PUBLICIDADE

A morte pela camisa que estamos usando

Mais do que a corrupção e as deficiências dos códigos de edificações, a exigência de custo baixo é a culpada pela tragédia em Bangladesh

Atualização:

A morte de mais de 800 operários de uma fábrica de confecção instalada no Rana Plaza, em Bangladesh, que desabou no dia 24, é uma tragédia que coloca em foco os problemas generalizados existentes no setor global do vestuário. Mas será a faísca que finalmente produzirá as tão necessitadas reformas em âmbito global?Depois de desastres como o de Rana ou o incêndio em outra fábrica de confecção - também em Bangladesh, em novembro -, a tendência é bancarmos o detetive e colocar a culpa em alguém, seja o proprietário do imóvel, a corrupção, as leis permissivas ou a fiscalização inexistente. Artigos e artigos na imprensa concentraram-se em descobrir a prova definitiva, como se houvesse uma única causa - sem a qual os operários hoje estariam sãos e salvos. Ou então, a cobertura das tragédias é conduzida como se fossem desastres naturais, que despertam a compaixão pública até a atenção da sociedade voltar-se para o próximo incidente. Sim, buscamos justiça. Mas no ímpeto de resolver o caso ou ajudar as vítimas nos recusamos a ver os verdadeiros culpados: a indústria global do vestuário e nós mesmos - pois somos cúmplices quando apoiamos ou ignoramos um sistema de comércio e terceirização do trabalho cuja finalidade é contornar regulamentos de todos os tipos, na busca do lucro máximo em detrimento das pessoas. De acordo com Juliet Schor, professora de Sociologia do Boston College, o custo das roupas em dólares caiu 39% desde 1994. Temos de nos perguntar até que ponto a nossa demanda por uma camiseta de US$ 5 e enormes descontos num jeans não são responsáveis por desastres como esses.O que ocorreu em Rana foi comparado ao incêndio, em 1911, na fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York. Ambos os desastres ocorreram em fábricas de roupas e resultaram em muitas mortes (na Triangle, foram 146). O incêndio na fábrica de Nova York permaneceu na memória coletiva dos americanos e tornou-se um exemplo dos terríveis problemas de um país em fase de industrialização.Lembramos do incêndio não em razão das mortes - uma vez que trabalhadores infelizmente morrem regularmente na indústria americana -, mas porque fomos forçados a confrontá-lo. Os trabalhadores do setor de confecção recusaram-se a retornar silenciosamente ao trabalho.Seus protestos em massa e a cólera coletiva obrigaram os consumidores de classe média a encarar a própria culpa e juntos pleitearam mudanças políticas.Com essas mudanças foram aprovados novos códigos de saúde e segurança, reformas nas leis trabalhistas e regulamentos modernos para uma indústria primitiva. Essas reformas iniciadas para os trabalhadores do setor de vestuário acabaram sendo adotadas para todos os trabalhadores em Nova York e fizeram do Estado um modelo para a nação.O simples fato de tudo isso ter sido o resultado de trabalhadores exercendo seus direitos foi esquecido no relato da história da fábrica Triangle, ao passo que muita atenção é dada às portas trancadas com correntes ou às violações de códigos de edificações - que se tornaram um mito urbano e se desviam da verdade. Naturalmente, não podemos ignorar a responsabilidade do proprietário da empresa ou do prédio - ou das autoridades locais. Mas se nos concentrarmos inteiramente neles vamos nos iludir em relação aos problemas de fato. Em vários aspectos o setor do vestuário permanece inalterado desde 1911. Ele ainda é ferozmente competitivo, com margens mínimas. E ainda é dominado pelo sistema de terceirização. Hoje as grandes lojas e marcas contratam a produção dos fabricantes porque elas não possuem meios próprios. então, as empresas contratantes terceirizam o trabalho para outras, reduzindo um pouco suas margens. A distância entre a marca e os que fabricam a roupa é grande e com frequência desconhecida, oculta nos diversos estágios do processo. E cada fase depende da capacidade de contratação de mão de obra cada vez mais barata para aumentar os lucros. As localizações dessas fábricas mudaram, mas o sistema permanece.Nossas roupas vêm de locais como Rana onde, como em 1911, o operário médio é uma jovem trabalhando em condições terríveis por um salário de fome.Logo após o incêndio na Triangle Shirtwaist, durante um funeral, a sindicalista Rose Schneiderman levantou-se e discursou para a multidão. Suas palavras deveriam nos sensibilizar ainda hoje. "Toda semana fico sabendo da morte prematura de uma das minhas colegas de trabalho. Anualmente milhares são mutiladas. Por que a vida de homens e mulheres é tão barata e a propriedade tão sagrada? Existem tantos de nós para uma vaga que pouco importa se 146 morreram queimados. Nos ofereceram alguns dólares para as mães, irmãos e irmãs desolados, como se fosse um donativo, a título de caridade. Mas cada vez que os trabalhadores protestam da única maneira que conhecem contra as condições de trabalho insuportáveis, a mão forte da lei é usada para nos pressionar vigorosamente."Rana deve ser tão importante para nós, no plano global, quanto o incêndio da Triangle. Deve nos forçar a acordar e, como consumidores, apoiar os trabalhadores que fabricam nossas roupas. Temos a responsabilidade moral de exigir que as roupas de marcas que usamos não sejam costuradas com sangue. Se não fizermos nada e simplesmente esperarmos pela próxima tragédia, continuaremos culpados, como foi delatado por Rose Schneiderman em 1911. / TRADUÇÃO DE TEREZA MARTINO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.