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Análise: A recessão da diplomacia brasileira

Foco precisa ser orientado em como restaurar a reputação internacional do Brasil no mundo.

Por Hussein Kalout
Atualização:

Uma das fragilidades estruturais do governo Bolsonaro reside, incontestavelmente, em sua "política exterior". Ao quer parece, não estamos mais diante de mera constatação ou de simples provação de fatos, mas, sim, perante um consolidado consenso nacional.

Talvez já não cabe mais discutir o descalabro que permeia os atuais rumos da diplomacia brasileira. O foco precisa ser orientado em como restaurar a reputação internacional do Brasil no mundo. Uma coisa é certa: nenhum governo - da coloração partidária que for - irá manter os mais remotos resquícios das atuais linhas dessa deformidade que se pretende ordenar de "política externa".

O presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, participam de reunião do G-20 por meio de chamada de vídeo Foto: Marcos Corrêa/PR

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Os eixos fundamentais sob os quais deveria se organizar a estratégia decisória da política exterior de um país e, especialmente, com as dimensões do Brasil, jamais poderia excluir de seu repertório três pilares centrais: pragmatismo, realismo e interesse nacional.

Contudo, o que está sendo legado ao nosso país, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo.

O condão dessa nova ordem diplomática culminou, na prática, na construção de insustentáveis narrativas que, de tão ruins, ainda mal ficam de pé. O primeiro dos três pilares que busca amparar o discurso da "política externa", foi modulado sob o pretérito de que todas as ações diplomáticas do Brasil seriam voltadas para defender o mundo livre e democrático contra todas as cepas de regimes autoritários mundo afora. Foram encaixados seletivamente nessa fenda a ditadura venezuelana, cubana e, ao gosto do freguês, até a chinesa. Se esquecerem, no entanto, que também aqui cabem o governo autocrático da Hungria, da Polônia e das ditaduras teocráticas médio-orientais.

O vértice do segundo pilar foi substabelecido, essencialmente, sob o mantra de resgatar a soberania nacional por meio do inarredável combate ao globalismo - o que na gramática política do bolsolavismo significa enfrentar a "tirania da governança internacional". Assim, o Brasil se unge contra o império do esquerdismo canhestro, resgatando a sacrossanta liberdade e o reluzente espírito nacionalista. Nessa alcova, foram escalados como inimigos de nossa soberania França, Alemanha, Argentina, todos os espantalhos do sistema multilateral - inclusive a Organização Mundial de Saúde - e (por que, não?) a China.

Já a ponta lapidar desse polígono, é onde se encontra ancorado o dogmatismo parnasiano do novo projeto da "política externa" bolsolavista: a inclusão do Brasil como obediente proletário na construção de revigorado mundo ocidental. Para que esse novo corolário de "política externa" pudesse ganhar amálgama, um alinhamento automático elevado ao cubo e acompanhado de renitentes louvações ao "Deus Trump", tornou-se o lastro de sobrevivência dessa estratégia. É um alinhamento cujo tom supera, em três oitavas, a relação preferencial estabelecida nos governos Dutra (1946-1951) e Castelo Branco (1964-1967).

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Ressalvadas as circunstâncias históricas, a Guerra Fria teve efeito preponderante sobre as escolhas estratégicas de Dutra e de Castelo Branco - o que em nada guarda correlação com a pitoresca subserviência atual. As concessões feitas a Washington eram estrategicamente calculadas e não violavam o interesse nacional. Tampouco, ainda, lançavam mão do monopólio sobre o processo decisório da política externa.

O nosso tabuleiro geopolítico se tornou minúsculo. Na América do Sul, o Brasil está à deriva. A Argentina já se descolou das negociações extrarregionais do Mercosul ignorando, completamente, Brasília. Com as potências europeias, o Brasil implodiu as pontes e está, hoje, sem interlocuções. Para irritar Pequim se invoca, infantilmente, a parceria com a Índia de Modi - porém, a dependência comercial da China é total e absoluta.

Se o Brasil já padecia do domínio de instrumentos de 'hard power', a diplomacia de turno já se encarregou em destroçar todo o capital brasileiro de 'soft power'. Aliás, no passado recente e longínquo, nenhum embaixador estrangeiro ousou instruir verticalmente o Itamaraty ou atreveu-se a pastorar o Presidente a República. Nos dias atuais, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo.

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Diante de uma diplomacia populista e que está a serviço da fundação de uma nova falange política - voltada para a captação e ideologização de seguidores -, podemos até aguardar com resiliência o passar da tempestade. Porém, não se deve permitir que a recessão diplomática do Brasil trate o interesse nacional como um mero detalhe.

*HUSSEIN KALOUT, 43, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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