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A revolução depois de Hugo

Se em vida Hugo Chávez mobilizou multidões com suas exortações ao "libertador" Simón Bolívar e ao socialismo "do século 21", o que dizer da morte do presidente venezuelano? Coronel, comandante, companheiro e príncipe-palhaço, o líder bolivariano preencheu um espaço imenso no imaginário na Venezuela - e talvez em toda a América Latina. Após os quase 14 anos em que governou soberano, praticamente inconteste, sua repentina ausência deixa órfãos seus milhões de aliados. Uma amostra do tamanho do vazio foi a cúpula de emergência da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), em dezembro, quando líderes dos Estados-membros do bloco reuniram-se em Caracas um dia depois da quarta e última cirurgia de Chávez em Havana. A pauta única: O que será de um dos experimentos político-sociais mais ousados do Hemisfério Ocidental ocorridos nos últimos 50 anos? A angústia em Caracas atesta tanto a força do chavismo - que criou raízes em oito países no Ocidente - quanto também seu maior fracasso. A clamada revolução bolivariana tem exatamente o tamanho do seu fundador. Socialismo crioulo? Absolutismo com assistencialismo? Ditadura com aval das urnas? Independentemente de como se define o movimento, seu desenho e modelagem dependiam desde sempre da cabeça e dos caprichos de seu patriarca e mais ninguém. A Venezuela de Chávez era o socialismo de uma pessoa só. Já na era pós-Chávez, ninguém arrisca dizer. Enquanto ainda agonizava o comandante, as apostas giravam em torno de três nomes. Um é do vice-presidente Nicolás Maduro, chavista "rojo rojito" e amigo do peito de Cuba. No mesmo gabarito está o líder da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, com trânsito fácil entre os militares. Ainda há o ex-vice e atual chanceler, Elías Jaua, que perdeu as eleições regionais em Miranda, Estado matriz da maior esperança oposicionistas, para o opositor Henrique Capriles. Em comum, os três chavistas ostentam a lealdade feroz a seu líder. E só. Quanto aos atributos de Chávez - visão, carisma, lábia, oportunismo e mão de ferro - todos deixam a desejar. Qualquer desfecho imaginável para o pós-chavismo passa impreterivelmente por uma negociação entre os três. Ainda assim, não será fácil. Chávez deixou uma pegada enorme nas Américas. Com a crise galopante em Cuba e a doença do velho Fidel Castro, o venezuelano consolidou-se como herdeiro autorizado do desgastado socialismo latino. Mais notável, o chavismo prosperou justamente quando sua força motriz já caducara. Quando assumiu o governo, em 1999, o imperialismo ianque clássico e a ditadura militar à moda antiga, que tanto turbinaram a revolução castrista, já eram páginas viradas. Ensaiaram uma reprise na pele de George W. Bush, cuja inépcia e antipatia global Chávez conseguiu explorar ao máximo, para o aplauso geral. Sim, a democracia e o capitalismo de mercado despontaram como apostas vencedoras da região, convertendo até líderes da outrora esquerda (Lula, Alan García, o uruguaio José Mujica) em paladinos da responsabilidade fiscal. Mesmo assim, Chávez resistia e conseguia imprimir e fortalecer sua pegada antigringos, capitalizando o descontentamento com a exclusão e as falhas do novo momento. Graças à demografia e ao desenvolvimento, a América Latina emplacou uma temporada impressionante de mudança e melhoramento. A taxa de pobreza não sumiu, mas despencou. A distância entre ricos e pobres, sempre abismal, também encolheu. Fica para os estudiosos a missão de explicar porque o canto do bolivarianismo ganhou ouvidos ao mesmo tempo em que a pobreza encolheu mais e as classes médias latinas avançaram tanto. Sim, os programas sociais do chavismo, bancados por petrodólares, ajudaram. Mas a ascensão dos excluídos foi a tendência em toda a região, onde de 2003 a 2010 a renda média latino-americana cresceu 30% e 73 milhões atravessaram a linha pobreza. Foi a combinação de políticas de mercado temperada por programas sociais - uma receita lulista e não bolivariana - que alçou a historicamente anêmica classe média brasileira à maioria. E não foram as missiones chavistas, mas os inovadores programas de transferência condicional de renda (a Bolsa Família brasileira, o Chile Solidário e o Oportunidades do México) que se tornaram tecnologia modelo de combate à pobreza latina, estudada e replicada no terceiro mundo afora. Na balança, o PIB dos oito países da Alba, de US$533 bilhões, representa modestos 11% do PIB latino-americano, de $5,6 trilhões, segundo o Banco Mundial. A urgência da reunião dos aliados em Caracas, que nada mais foi que a disputa antecipada de herdeiros da partilha do espólio do patriarca, explica-se. As dúvidas são existenciais. Que fará Cuba se for cortado o envio de mais de 100 mil barris de petróleo por dia para ilha? E Nicarágua, que recebeu de bondade US$ 609 milhões em petróleo venezuelano, equivalente a 10% de seu PIB de 2011? Como fica Bashar Assad, o déspota sírio, cuja sobrevida se deve, em boa medida, aos petroleiros venezuelanos, que ignoraram o bloqueio internacional? A conta não é apenas econômica. A lacuna deixada por Chávez inclui todo um estilo de governança que impulsiona o carisma e força eleitoreira do grande líder para desbastar as instituições democráticas. Assim, uma vitória nas urnas "autorizou" Chávez a reescrever a Constituição, lotear os tribunais com magistrados amigos, intimidar a mídia independente e retalhar os distritos eleitorais - para garantir o domínio completo. Mas tudo dependia da vara de condão do comandante. Chávez mantinha sua ascendência sobre as tendências bolivarianas com uma mistura entre cacetadas e confeites. Comprou lealdade, distribuindo benesses à hierarquia chavista - os "boligarcas" - que se serviram de sobras de orçamentos opacos e alheios à fiscalização. Era a corrupção do século 21. E ainda desequilibrava os potenciais rivais, passando-lhes descomposturas em praça pública, no seu programa dominical, o Alô, Presidente, e até demitindo-os ao vivo por seus deslizes. A alta-costura do chavismo só não contava com a mortalidade. Desde meados de 2011, quando, enfim, divulgou-se o câncer do líder, a sorte da Venezuela mudou. Analistas, militantes políticos, chavistas e milicianos - todos na Venezuela viraram oncologistas. Pois, conforme as palavras astutas de Moisés Naím, a revolução bolivariana passou a depender mais da biologia do que da ideologia. Agora, depende de uma ciência bem menos exata e muito mais imprevisível. A disputa é entre rivais no seio do chavismo, cada qual de posse de um pedaço do legado bolivariano, mas nenhum com o cacife ou muito menos a aura do líder original.

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Por Mac Margolis
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