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A sentença de morte que transformou minha vida

Portar HIV já significou ter hora marcada para morrer, mas essa agenda mudou

Por Mark Trautwein
Atualização:

Manifestantes em Nova York durante as discussões na ONU sobre Aids, na semana passada

 

 

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Não morri com hora marcada. Muitas pessoas não acreditam que a morte tenha uma data, ao menos uma que seja conhecida. Mas se você foi infectado com o vírus da aids no início da epidemia, pensou diferentemente. Aos 61 anos, vivi metade da vida com aids, minha companheira constante e prima distante, inseparável identidade que não permito me definir, fato cotidiano e situação especial que mudou minha vida sob todos os aspectos. Embora não houvesse na época testes para detectar a doença, creio que a contraí em 1982. Hoje é difícil imaginar a liberação sexual que tomou conta dos gays naquele tempo. Era o fim da opressão. Tínhamos liberdade e afirmávamos isso com sexo. Mas, depois de um encontro com um famoso ator que ocultava sua homossexualidade, um enorme hematoma apareceu no meu braço. Em seguida, fui hospitalizado com um problema sanguíneo sem explicação aparente. Os médicos aturdidos pensaram muito sobre o caso, perguntaram se eu tinha bebido gim com tônica. Disse-lhes que era a bebida do meu pai. Sem tantos absurdos, o problema também vinha ocorrendo com gays em Nova York. O termo "praga gay" estava no ar, mas ninguém sabia o que era nem como a pessoa era infectada. A aids parecia muito aleatória, aniquilando estranhos e conhecidos; mas, você sempre se dizia que a doença estava distante. Então, de repente, ela já não estava mais distante de mim, absolutamente. Deixei o hospital certo de que tinha contraído o vírus. À medida que a epidemia se propagou na década de 80, todos os gays conviveram com a aids, infectados ou não. Há 30 anos, os centros de controle e prevenção de doenças reportavam os primeiros casos - um período aterrorizador e de desamparo. As informações médicas aumentavam. Aprendemos mais sobre o HIV e sua transmissão pelo ato sexual, mas tudo continuava nebuloso e restrito. Nada que você soubesse ou fizesse importava. Não existiam tratamentos. Um resfriado era uma ameaça de coisa pior, cada germe era um punhal apontado a seu sistema imunológico. Uma noite, um bom amigo saiu furioso da minha casa porque servi porco no jantar, pois todos sabiam que carne de porco poderia matá-lo se você estivesse com o vírus. Mesmo depois de os testes se tornarem possíveis, muitos preferiam não saber. Quando o meu teste e o do meu parceiro deram positivo, não nos surpreendemos. Já sabíamos. Sentia-me acossado pela morte. Sexo agora podia significar a morte, não a liberdade. Mais e mais amigos adoeciam. Muitos morreram. E muitas vezes as mortes eram horripilantes. Os âncoras da TV olhavam para você toda a noite e calmamente anunciavam a doença como "sempre fatal". Aqueles que tomavam precauções adoeciam e morriam. Os que não o faziam também adoeciam e morriam. Todo mundo estava morrendo. Minha morte era só uma questão de tempo, e provavelmente num tempo muito breve. A vida continuou em meio a todas aquelas mortes. Eu tinha um ótimo trabalho no Congresso. Meus colegas eram gays infectados, incluindo meu chefe. Conversávamos muito sobre a doença, a portas fechadas no fim do dia. Enquanto isso, o governo para o qual eu trabalhava nos ignorava. A sociedade tinha medo de nós. Havia rumores de quarentena e os julgamentos morais eram intermináveis. Tínhamos apenas uns aos outros. Sozinhos, nos unimos para cuidar uns dos outros. Em algumas décadas, uma minoria desprezada saiu da opressão e partiu para a resistência, a libertação, a devastação e, finalmente, uma vida comunitária. E encontramos essa comunidade não em bares, mas em clínicas, hospitais e organizações que criamos para tratamento, informação e apoio; para juntos chorarmos e lembramos. Não era um trabalho feliz, mas era um trabalho necessário. No final da década de 90, meu nome ainda não tinha sido evocado pela morte. Os remédios eram fornecidos por um sistema de saúde forçado a isso por ativistas furiosos. Eram medicamentos que apenas nos prometiam mais tempo para a descoberta de drogas mais eficientes, tempo para um pouco mais de vida. Meu médico disse que a única razão para não tomar o primeiro desses remédios, o AZT, era que eu teria de ingeri-lo todos os dias para sempre, o que, na época, não parecia um problema. Assim, tomei-os todos, sofri seus efeitos colaterais e iniciei a fase de tentativas e erros para viver com aids. Um novo remédio podia retardar a destruição do sistema imunológico, mas afetava o fígado e acabava substituído por outro, que também colocava em risco alguma outra função. E assim por diante. Mas nada disso era promessa de um tempo de vida maior. Minha saúde diária e meus diagnósticos diziam que meu tempo estava acabando. Vi muitos amigos morrerem. Eu queria viver meus últimos dias de vida na minha amada São Francisco. Em 1994, numa noite quente de julho, na Virgínia Ocidental, meu parceiro e eu nos sentamos sob a marquise do Hotel Greenbrier com meu irmão e minha cunhada, que estavam em lua de mel. E, antes mesmo de eu poder pedir, eles se ofereceram para cuidar de nós até a nossa morte. No ano seguinte, abandonei meu emprego e minha ambição; e comprei uma casa próxima à minha família, para facilitar a embaraçosa administração de nossa morte. Então, tudo mudou. Os inibidores de protease tornaram-se acessíveis. Nasceu o "coquetel". Você não podia derrotar a aids, mas podia lutar por um empate, talvez indefinidamente. Por 15 anos, a morte sempre esteve presente. Pensava nela diariamente. Ficava impressionado com as pessoas que conseguiam sair diariamente como se fossem imunes a ela. E agora eu precisava me ajustar a uma vida que acreditei já não ter a frente. Foi uma das coisas mais difíceis e bem-vindas que me aconteceu. Ainda nos meus 40 anos, tive que repensar tudo, já que ia viver. Meu projeto financeiro tornou-se inviável. Tinha de pensar em trabalhar. Minha relação com meu parceiro teria que passar por um exame porque, embora muita coisa nos unisse, ignorávamos as diferenças que se tornaram irrelevantes diante da sagrada obrigação de cuidar um do outro no leito de morte. Agora tínhamos que encarar essas diferenças. Ambos sobrevivemos, mas "nós", não. Continuar vivo significou administrar a saúde em tempo integral. Os medicamentos ficaram insanamente complexos. E o abençoado coquetel apresentava efeitos colaterais malditos, incluindo doenças cardiovasculares. Certa vez, brinquei que morrer de um ataque cardíaco aos 75 anos era a menor das minhas preocupações. Na época estava com 51 anos, tinha tido dois deles, e fui submetido a 4 angioplastias. A ingestão de remédios era terrível. Alguns comprimidos que tinham de ser tomados a cada 4, 6 ou 12 horas com o estômago vazio; outros eram ingeridos com alimento. Mais e mais. Cada pessoa com aids que eu conhecida trazia consigo um bip para lembrá-la dos próximos remédios que devia tomar no dia. Essa minha dieta de medicamentos ficou tão contraditória que simplesmente se tornou impossível seguir o programa adequadamente. Os médicos apenas me receitavam mais e mais remédios. O dia não tinha o número de horas suficiente para tudo. Era impossível, em 24 horas, tomar toda aquela quantidade de medicamentos; que deviam ser ingeridos com o estômago vazio ou com o estômago cheio - e respeitando a frequência da dosagem recomendada. Eu precisaria ser dois para realizar tal façanha. Então, a alternativa era escolher que medicamentos tomar, de acordo com cada dia. E, até hoje, ainda engulo cerca de 25 comprimidos diariamente. Mas a morte não me inquietou mais. Eu estava vivo e essa minha companheira mortífera ficou menos insistente. A aids e eu convivemos há quase 30 anos. Minha relação com a doença é uma das mais duradouras, pois enriqueceu e arruinou minha vida. Ela me roubou amigos e entes queridos e, com eles, as lembranças do que tínhamos e o repositório da minha própria história. Encerrei uma carreira que adorava. Custou-me um casamento. Minha relação com o sistema de saúde nos EUA foi dispendiosa e exaustiva. Sei que esse é um pequeno preço a pagar pela vida. O que ganhei foi precioso. Acima de tudo, a companhia constante da aids ensinou-me que vida significa viver, não enganar a morte. Combater a doença é necessário e lutar com a vida, inevitável. Hoje aceito suas consequências, sejam elas quais forem. Minha enfermidade não me tornou uma pessoa especial e minha sobrevivência não me tornou uma pessoa corajosa. Naquele dia que sai do hospital sabendo que estava com aids, me foram dados grandes presentes: a convicção de que todos tentamos nos equilibrar no mais delicado dos fios; e a certeza de que a única maneira de viver é amando a vida. Não morri com hora marcada. E tenho aprendido a viver a vida sem marcar hora. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

 

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