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A triste odisseia do lixo

Uma eleição presidencial incapaz de ser realizada há 20 meses por falta de quórum no Parlamento, um governo supostamente de unidade paralisado pelas dissensões, um marasmo econômico agravado pelo grande fluxo de refugiados vindos da Síria: os libaneses acreditavam ter visto tudo, sabiam tudo, em matéria de anomalias. 

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Por Issa Goraieb
Atualização:

Mas, mesmo acostumados à terrível carência de serviços públicos, jamais imaginariam que, desde julho do ano passado, o lixo doméstico não cessaria de se acumular às portas de seus domicílios ou nas calçadas das ruas e à margem das estradas de um país que outrora se apresentava como a Suíça do Oriente Médio.

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Todas as fórmulas imaginadas para resolver essa pestilenta questão fracassaram uma após a outra, apesar de uma virulenta campanha, acompanhada de manifestações, levada a cabo pela sociedade civil. Nesse ínterim, e juntamente com as tensões sectárias, tornou-se impossível dar continuidade à coleta de lixo, uma vez que todas as regiões deste minúsculo país se recusam a receber o lixo produzido pelas outras. Pela mesma razão, e à qual veio se juntar o temor da poluição atmosférica, incineradores também não puderam ser instalados. Mas tem sido especialmente a tendência de uma boa parte dos políticos às negociatas e à disputa desenfreada pelos contratos e comissões que impedem qualquer solução do problema.

A crise teve início no ano passado, quando a empresa encarregada havia 20 anos da coleta de lixo, não teve seu contrato renovado, pois o valor cobrado foi considerado excessivo. Mas as empresas candidatas à sucessão, que eram apadrinhadas por diversas personalidades políticas, se mostraram ainda mais glutonas, cobrando valores exorbitantes. Tão enorme foi o escândalo que um contrato concluído por meio de licitação e outorgado a um desses “protegidos”, foi pura e simplesmente anulado.

Em desespero de causa, as autoridades libanesas acabaram optando pela exportação do lixo: mas tal decisão provocou um escândalo ainda mais retumbante, em que estavam envolvidos diversos grupos mafiosos, estrangeiros e locais.

O primeiro elemento do escândalo: foi sem qualquer licitação e com a eliminação arbitrária dos demais concorrentes que o Conselho de Desenvolvimento e Reconstrução (CDR, órgão importante do conselho de ministros) concedeu o contrato à empresa britânica Chinook Urban Mining, para se encarregar do transporte do lixo para usinas de reciclagem russas com, bem entendido, o acordo de Moscou.

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Segundo elemento: as sociedades civis imediatamente acusaram um dos dirigentes dessa empresa, Mohammed Ali Ajami, de ser um agente israelense, acusado no passado de colaborar com o Estado hebreu. 

Essas acusações foram ironicamente comentadas por websites israelenses que denunciaram a mania dos árabes de ver complôs sionistas por toda a parte. Mas segundo outros sites, aparentemente independentes, Ajami, cidadão britânico e grande especulador teria agido certa vez como intermediário em negócios de interesse israelense e havia mantido excelentes relações com o premiê Ariel Sharon e depois Binyamin Netanyahu.

E para concluir, o mais estrondoso elemento desse escândalo: na terça-feira, o Ministério do Meio Ambiente da Rússia anunciou que os documentos apresentados pela empresa Chinook foram adulterados e continham assinaturas oficiais falsas. Convocada pelo governo libanês para dar explicações, a empresa não forneceu a prova da sua boa-fé; não só o contrato foi anulado, mas o Estado libanês embargou a caução de US$ 2,5 milhões que a Chinook havia depositado junto ao CDR.

Isso quer dizer que, para consternação da população, a crise do lixo retornou ao ponto de partida e o governo se propõe agora a criar quatro lixões subterrâneos em diversos pontos do território. Isso para furor dos ecologistas que temem uma poluição dos lençóis freáticos. As autoridades pretendem mesmo apelar ao Exército e à polícia para impor, mesmo que à força, a instalação desses lixões. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

ISSA GORAIEB É COLUNISTA DO 'ESTADO' E JORNALISTA RADICADO EM BEIRUTE

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