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A Ucrânia é apenas uma pequena parte dos planos de Putin; leia a análise

O projeto de Putin é remodelar o acordo pós-Guerra Fria, garantindo no processo a sobrevivência do sistema de poder personalizado da Rússia

Por Lilia Shevtsova
Atualização:

MOSCOU - O presidente Vladimir Putin, da Rússia, está jogando um jogo de suspense. Quando ele chutou o tabuleiro de xadrez global no ano passado, reunindo milhares de soldados na fronteira com a Ucrânia, ele deixou o mundo em pânico. Uma invasão parecia iminente - e além dela assomava a ameaça de um novo confronto global, contestado por potências com armas nucleares. As coisas não se acalmaram desde então.

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O raciocínio do Kremlin para a escalada é curioso. Está agindo em resposta, afirma, ao Ocidente “atrair a Ucrânia para a Otan” e à usurpação da Otan sobre o que o Kremlin considera a área de influência da Rússia. Mas isso parece um blefe, ou mesmo trollagem. A verdade é que a Otan, apesar de todos os seus gestos de boas-vindas, não está pronta para oferecer a adesão à Ucrânia.

Então, qual é o objetivo de Putin? O imediato, com certeza, é devolver a Ucrânia à órbita da Rússia. Mas isso é apenas uma pincelada em uma tela muito maior. O projeto de Putin é grandioso: remodelar o acordo pós-Guerra Fria, garantindo no processo a sobrevivência do sistema de poder personalizado da Rússia. E a julgar pela resposta embaraçosa e angustiada do Ocidente até agora, ele pode estar perto de conseguir o que deseja.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em evento com estudantes em 1º de setembro. Foto: Sputnik/Evgeny Paulin/Kremlin via REUTERS

Nos últimos anos, Putin reviveu com sucesso a tradição russa do governo de um homem só ao alterar a Constituição, reescrever a história e reprimir a oposição. Agora ele procura fornecer ao sistema uma espinha dorsal robusta de Grande Potência, devolvendo à Rússia seu glamour global.

Na última década, a Rússia de Putin não apenas demonstrou sua disposição de retomar o controle do antigo espaço soviético, testando suas ambições na Geórgia e na Ucrânia, mas também deixou suas pegadas em todo o mundo, inclusive por meio da intromissão nas democracias ocidentais. No entanto, o impasse de hoje em relação à Ucrânia leva as coisas a um novo nível.

Não mais contente em incomodar o Ocidente, Putin agora tenta forçá-lo a concordar com uma nova dispensa global, com a Rússia restaurada à eminência. Mas não para por aí. O avanço geopolítico serviria para salvaguardar o governo de Putin. Portanto, o Ocidente, ao aceitar a posição geopolítica da Rússia, também assinaria embaixo, efetivamente, sua agenda doméstica. Os Estados Unidos se tornariam, em casa e no exterior, o provedor de segurança da Rússia. É um gambito.

O momento é crucial. Com a União Europeia consumida por seus próprios desafios e a rivalidade dos Estados Unidos com a China ainda sem atingir o ponto máximo, o Kremlin está aproveitando o momento para buscar seu grande projeto. Para isso, ele pode colocar o capacete de guerra a qualquer momento. Mas o confronto não é o objetivo do Kremlin. A escalada é sobre a paz nos termos da Rússia.

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É difícil saber o que vem a seguir. Putin não pode forçar seus oponentes ocidentais a se renderem; nem ele está pronto para recuar. Mas ele poderia usar concessões e recusas para seguir sua agenda. Concessões, como a promessa explícita da Otan de não se expandir mais para o leste, seriam apresentadas como vitórias e as recusas como pretexto para uma nova escalada. Um sucesso já está claro: o Ocidente foi forçado a recompensar a Rússia - por meio de divulgação, diplomacia e, acima de tudo, atenção - pelo ato caridoso de não invadir a Ucrânia.

Essa ordem nada tem em comum com as formuladas na Conferência de Yalta em 1945, digamos, ou com o Congresso de Viena em 1815. Seus arquitetos seguiram as regras. O Kremlin está sugerindo algo muito diferente: a irrelevância das regras. As normas pelas quais o mundo tem sido governado nas últimas três décadas seriam jogadas fora, em favor da interpretação criativa do possível. Neste vale-tudo, Putin - mestre mercurial do suspense e da mudança repentina - pode buscar sua fusão de poder geopolítico e governo pessoal.

Hoje, a Ucrânia é a joia pela qual lutar. Mas não vai acabar aí: Belarus, cujo líder em apuros conta com o apoio da Rússia, pode ser o próximo prêmio na rivalidade geopolítica - ou talvez seja o Casaquistão, onde irrompeu a ira popular contra o regime corrupto apoiado pela Rússia. O drama está apenas começando. Outros países vizinhos podem se tornar reféns do sistema de sobrevivência da Rússia, que requer dominação externa por razões de segurança interna.

Até agora, o Kremlin tem sido extremamente sortudo, ou extraordinariamente habilidoso, em jogar uma mão fraca sem ases na manga. Trata-se de um estabelecimento ocidental determinado a manter o status quo, mesmo que isso signifique acomodação. Afinal, a natureza da globalização impede uma política de contenção séria: como o Ocidente pode deter a Rússia quando está enredada em uma teia de laços econômicos e de segurança com o Estado russo?

Soldado ucraniano em trincheira perto de Svetlodarsk, na fronteira com a Rússia; americanos tentam conter ação militar russa Foto: Anatoli Stepanov/EFE

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Putin sem dúvida percebe a vantagem. Tendo lidado com os líderes ocidentais por décadas, ele parece ter concluído que pode bancar o valentão. O fato de os Estados Unidos terem concordado rapidamente em iniciar as negociações sugere que a estratégia de Putin está funcionando: pode levar meses até que os parceiros ocidentais descubram que estão envolvidos em uma cortina de fumaça.

Eles claramente ainda precisam descobrir como responder à política de suspense do Kremlin. Ao forçar o mundo a adivinhar o que a Rússia está tramando e ao seguir linhas políticas mutuamente contraditórias, o Kremlin mantém o Ocidente desorientado. Acostumado a funcionar de maneiras racionais e avessas ao risco, o Ocidente não sabe como reagir a esse "caos organizado".

Existem várias armadilhas nas quais a Rússia e o Ocidente podem cair. O tipo de sanções que o governo Biden está considerando poderia ser devastador para o Estado russo e suas elites, que estão integradas ao Ocidente. E os russos comuns não vão sacrificar seus padrões de vida indefinidamente por guerras e antagonismo.

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De acordo com o Levada Center, um instituto  independente, em 2021 apenas 32% dos russos queriam ver a Rússia como "uma grande potência respeitada e temida por outros países" e apenas 16% achavam que a guerra poderia aumentar a autoridade de Putin. A droga patriótica do militarismo começou a passar.

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Também existe um Ardil-22 para o Ocidente: qualquer barganha que permitisse ao Kremlin interpretar as regras globais do jogo minaria os princípios ocidentais. No entanto, rejeitar a barganha poderia incitar o Kremlin a quebrar tudo. As democracias liberais do mundo dificilmente estão prontas para um confronto com um oponente nuclear.

Este é um impasse e parece não haver saída. Ambos os lados continuam a jogar “quem pisca perde”: os Estados Unidos e seus aliados decidiram reassegurar o apoio da Ucrânia, enquanto a Rússia manteve o martelo do desdobramento militar pronto. As negociações que começaram ontem vão tentar encontrar as áreas onde o acordo é possível e onde não é. É uma tarefa difícil. E mesmo que tais esforços consigam conter temporariamente a situação, a suspeita mútua persistirá. O motivo é simples: enquanto Putin tiver domínio, seu grande projeto nunca estará longe.

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