A Venezuela se debate com seus grilhões

Uma guinada rumo à ditadura, manifestações contra o governo e nenhum fim à vista para a crise no país

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Por The Economist
Atualização:

Desta vez, os protestos aconteceram em todo o país. De Maracaibo, no oeste, a Ciudad Guayana, no leste, centenas de milhares de venezuelanos foram às ruas para exigir o fim do regime autoritário liderado por Nicolás Maduro. Houve mais de 100 detenções; no Estado de Miranda, um policial morreu. “Não vai ser com eleições que esse governo vai deixar o poder”, diz a massagista María Gil, que participou da manifestação na capital, Caracas. “Não tem mais nada que a gente possa fazer. Só protestar.” O vendedor ambulante David Mujica também acha que votar “não muda nada”.

Maduro tem menos de 20% de aprovação no país Foto: REUTERS/Christian Veron

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Os dois manifestantes chamam Maduro de “ditador”, palavra cada vez mais empregada pelos venezuelanos depois dos acontecimentos da última quinzena. No dia 21, faltando pouco menos de uma semana para que os eleitores comparecessem às sessões eleitorais, a fim de consignar seu apoio à realização do referendo revogatório do mandato do presidente, o processo sofreu uma interrupção abrupta. Cinco tribunais criminais estaduais expediram liminares, anulando a etapa anterior, que consistia na apresentação das assinaturas de, no mínimo, 1% do eleitorado. Supostas fraudes na coleta das assinaturas teriam motivado as decisões judiciais. É um despropósito. Em abril, a oposição apresentou 2 milhões de assinaturas, dez vez mais que o número necessário para dar início ao processo. O Conselho Nacional Eleitoral, órgão que deveria ser independente, mas se alinha com o governo, confirmou a validade de 1,4 milhão delas.

Convivendo com a pior recessão da história da Venezuela e uma escassez aguda de alimentos e remédios, o governo de Maduro já não disfarça que faz pouco caso da autoridade de instituições que não estejam sob seu controle. Controlada pela oposição, a Assembleia Nacional é ignorada. Os parlamentares até chamam os ministros para prestar esclarecimentos sobre projetos governamentais, mas nenhum deles atende às convocações. 

No dia 14, Maduro apresentou o orçamento de 2017 sem enviá-lo à Assembleia, violando a Constituição do país. O Tribunal Supremo de Justiça, que é dominado por chavistas e considerou nulas todas as leis aprovadas este ano pelos parlamentares, autorizou o procedimento.

Agora, a Assembleia rompeu de vez com o governo. No domingo, depois da suspensão do referendo, os parlamentares realizavam uma sessão extraordinária para decretar que havia ocorrido um golpe de Estado no país quando uma multidão pró-governo invadiu o plenário da Casa, numa tentativa atabalhoada de mostrar que a “revolução” popular continua viva. Alguns dos invasores estavam armados. 

Esta semana, a Assembleia deu início ao julgamento político de Maduro, a quem a oposição acusa de “abandono do cargo”. Mas ninguém acha que isso terá maiores consequências. A Constituição venezuelana não contempla a possibilidade de impeachment do presidente – e, mesmo que contemplasse, Maduro provavelmente faria como se não fosse com ele.

Radicalização. A suspensão do referendo revogatório é sinal de que o regime bolivariano chegou a uma decisão sobre como enfrentar a crise. Acreditava-se que houvesse alguns chavistas favoráveis a que o governo permitisse a realização do referendo em 2017, quando estaria expirado o prazo para que uma derrota – dada como certa, tendo em vista o índice de 20% de aprovação de Maduro – resultasse na convocação de novas eleições. A partir de 10 janeiro, a revogação do mandato de Maduro tem como única consequência sua substituição pelo vice-presidente.

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Prevaleceu a posição da linha-dura do regime, contrária à realização do referendo. Os governadores dos cinco Estados cujos tribunais bloquearam o processo de consulta popular estão entre eles. A decisão parece indicar que o grupo pretende seguir com Maduro, pelo menos até a próxima eleição presidencial, em 2018. Agora, porém, alguns duvidam que o pleito venha a ser realizado.

No momento, a palavra favorita de Maduro é “diálogo”, invocada mecanicamente em seus discursos intermináveis. Na segunda-feira, o presidente fez uma visita surpresa ao papa Francisco, que vinha tentando organizar uma reunião entre governo e oposição. A iniciativa papal parece estar sendo benéfica ao governo. Jesús Torrealba, secretário-geral da coalizão de oposição, Mesa da Unidade Democrática (MUD), posou constrangidamente para fotos ao lado de um líder governista e de um enviado do pontífice. O governo deu a entender que os dois lados haviam chegado a um acordo para dar início a negociações formais no fim de outubro.

Não é bem assim. Para a maioria dos líderes oposicionistas é inaceitável dialogar com um regime, a seu ver, ilegal. Henrique Capriles, que quase derrotou Maduro na eleição de 2013, deixou clara sua recusa em participar das conversas: “Estamos lutando contra o diabo”, disse ele. A fala foi um presente para Maduro, que agora pode alegar que está aberto ao diálogo, mas que a oposição tem divergências internas e se mostra intransigente.

Os oposicionistas reagiram com um ultimato: se o presidente não reativar o processo do referendo, realizarão uma passeata até o palácio presidencial na próxima quinta-feira. Mas é muito pouco provável que o regime caia só com manifestações de rua.

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A posição do Exército permanece sendo crucial. A oposição tenta semear dissensões em seu interior, pedindo que as Forças Armadas garantam o cumprimento da Constituição. Mas a tática tem poucas chances de sucesso. Os mal remunerados oficiais de baixo escalão podem até se mostrar receptivos, mas o alto escalão, que controla a maior parte da economia venezuelana, não dará ouvidos a apelos dessa natureza.

Na terça-feira, o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, fez um pronunciamento na televisão. O Exército, disse ele, não interfere na política. Mas então, evidenciando a firme disposição dos militares em apoiar o regime, encerrou sua fala com uma homenagem a Hugo Chávez, formulador original das políticas econômicas que empobreceram o país. Em uniforme de combate, ergueu o punho cerrado e bradou: “Vida longa a Chávez”. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

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