''''Achado não é roubado'''' no Ártico

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Por Robert J. Miller
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No início do mês, uma expedição russa chegou ao Pólo Norte. Dois homens, em submarinos, desceram 4.200 mil metros no Oceano Ártico para explorar o fundo do mar e instalar uma cápsula de titânio contendo a bandeira azul, branca e vermelha da Rússia. Os exploradores querem ter direito de alardear que realizaram uma jornada comparável à ida à Lua, mas também insistem no direito da Rússia a uma grande extensão do Oceano Ártico. O ritual de fincar a bandeira e o raciocínio por trás das audaciosas pretensões territoriais dos russos têm raízes no desenvolvimento e utilização da Doutrina da Descoberta por exploradores americanos e europeus dos séculos 15 ao 20. Tendo início com o papa Nicolau V, em 1455, os europeus declararam seu direito divino a terras desabitadas ou ocupadas por "pagãos e inimigos de Cristo". O requisito principal era a obediência à ordem de chegada dos ocupantes. Quanto à aplicação da Doutrina da Descoberta no século 21, a Rússia não está sozinha. As mudanças climáticas vêm reduzindo a calota glacial do Ártico e abrindo novos corredores para o mar, áreas de pesca, campos de petróleo e reservas minerais ocultas para exploração. Ilhas inóspitas repentinamente ficaram valiosas. Uma nova corrida para descobrir, conquistar e apossar-se de outro "novo mundo" está acontecendo. Por exemplo, EUA e Canadá estão numa disputa envolvendo a alegação canadense de que uma rota por mar da Passagem Noroeste emergente está dentro do seu território. Os EUA insistem que as águas são neutras e abertas para todos, mas o primeiro-ministro canadense, Stephen Harper, declarou que colocará navios quebra-gelo militares na área para "afirmar nossa soberania e proteger nossa integridade territorial". O Canadá também está em disputa com a Dinamarca sobre a pequena Ilha Hans, próxima à região noroeste da Groenlândia. Em 1984, o ministro da Dinamarca para a Groenlândia chegou a Hans de helicóptero, fincou ali a bandeira dinamarquesa, enterrou uma garrafa de brandy e deixou uma nota dizendo: "Bem-vindo à Ilha Dinamarquesa." O Canadá não gostou. Em 2005, o ministro da Defesa canadense e soldados desembarcaram na ilha e içaram a bandeira canadense. A Dinamarca fez um protesto oficial. Atualmente, fincar uma bandeira ou enterrar uma garrafa de brandy não basta para garantir a posse - tratados internacionais como a Convenção da ONU sobre o Direito do Mar são invocados. Mas, historicamente, a primeira regra da Doutrina da Descoberta é reclamar um direito físico. Exploradores espanhóis, portugueses e, mais tarde, ingleses e franceses faziam todos os tipos de rituais quando descobriam terras: içavam a bandeira, colocavam a cruz cristã e deixavam vestígios provando quem esteve ali primeiro. Em 1776-78, por exemplo, o capitão James Cook definiu o direito inglês à Columbia Britânica enterrando garrafas com moedas inglesas em diversos locais. Em 1774, ele apagou os sinais de posse deixados pelos espanhóis no Taiti, substituindo-os por marcas inglesas. A Espanha, ao tomar conhecimento do fato, despachou seus exploradores para restaurar o seu direito. Os americanos também reclamaram seus direitos. A expedição Lewis e Clark fez marcas e sinais em árvores e rochas na parte noroeste do Pacífico como prova da presença americana e de seu direito àquela região. E, em março de 1806, a mesma expedição deixou um documento no Forte Clatsop, na desembocadura do Rio Columbia, fornecendo cópias aos índios para ser entregues a brancos que chegassem mais tarde, provando o direito dos americanos àquela região. Como determinava o documento, ele era exibido e depois circulava para que, "por meio de algumas pessoas civilizadas, possa ficar conhecido do mundo informado" que Lewis e Clark garantiram os direitos da terra, em todo o percurso na direção do Oceano Pacífico, em nome do governo dos EUA. Uma década depois, quando EUA e Inglaterra quase duelaram pelos direitos de descoberta do Pacifico Noroeste, o secretário de Estado americano John Quincy Adams e o presidente James Monroe ordenaram aos oficiais americanos que retornassem à região do Rio Columbia "para reiterar o direito de posse dos EUA". Em 1818, o capitão James Biddle fez um ritual de descoberta clássico: na presença dos índios chinook, ao norte do Rio Columbia, ele levantou a bandeira dos EUA, fez um buraco no chão e colocou uma placa de chumbo com a inscrição: "Tomada de posse, em nome dos EUA, pelo capitão James Bidddle." Ele fez o mesmo na margem sul do rio. Em 1790, a lei federal refletia a Doutrina da Descoberta, mas foi só em 1823 que a doutrina recebeu o reconhecimento oficial da Suprema Corte dos EUA. No caso Johnson x McIntosh, em que se questionava se cidadãos particulares poderiam comprar terras indígenas, o presidente do tribunal, John Marshall, declarou que a descoberta tinha sido a lei do continente desde o início da exploração européia. Os direitos indígenas "à plena soberania, como nações independentes, foram necessariamente diminuídos e seu direito de dispor do solo como desejassem foi negado pelo principio fundamental original segundo o qual a descoberta dá direito exclusivo ao descobridor". Em suma, os índios não podiam vender suas terras a cidadãos particulares porque seus conquistadores (na época, o governo dos EUA) eram os proprietários. Hoje, esse aspecto da Doutrina da Descoberta, de 600 anos, ainda prevalece na lei internacional e dos EUA. Persiste o princípio com base no qual EUA, Canadá, Nova Zelândia e Austrália continuam a ter controle sobre as terras dos povos indígenas. O princípio maior, do "achado não é roubado", também subsiste, apesar dos tratados internacionais. Prova disso é a simbólica bandeira russa fincada no potencialmente lucrativo e já contestado fundo do Ártico.

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