Alemanha, uma nação de refugiados

Merkel assegurou seu lugar no livro de história com sua decisão redentora e deixou parceiros europeus envergonhados

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Por Roger Cohen
Atualização:

Há uma nova e decidida nação. Chama-se Alemanha. Os EUA, com medo do páreo, passaram o bastão. No extraordinário processo que viu mais de 1 milhão de refugiados chegarem à Alemanha este ano, a chanceler Angela Merkel tem mantido um consistente refrão: “Podemos fazer isso”. O “isso” em questão é o mais redentor ato praticado por uma nação europeia em muitos anos.

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Os alemães entenderam que fugir da Síria através dos bloqueios do Estado Islâmico, cruzar com a família mares agitados em precários barcos e finalmente alcançar a Europa em busca de um lar não é uma decisão desesperada. É uma decisão razoável, se a alternativa é ver seus filhos explodidos por bombas ou sua filha estuprada por um jihadista. Os alemães do pós-guerra são um povo razoável. Proporcionalmente, os EUA teriam de receber 4 milhões de refugiados este ano, considerando-se sua população. Ficaram 3,9 milhões aquém desse número.

A maior parte dos refugiados na Alemanha é da Síria. Os EUA admitiram cerca de 1.900 refugiados sírios nos últimos quatro anos. Sim, você leu direito. O presidente Barack Obama agora comprometeu-se em receber 10 mil sírios – decisão desafiada por mais de 20 governadores republicanos empenhados em associar “muçulmano” e “do Oriente Médio” a terrorista. Que aconteceu com “a terra dos bravos”?

Isso sem esquecer que a crise síria não pode ser dissociada da guerra do Iraque, o que torna os EUA diretamente responsáveis. Mesmo assim, sob qualquer avaliação razoável, a resposta americana à crise de refugiados sírios tem sido insignificante. Especialmente para uma terra povoada através dos séculos por famílias de migrantes fugidos da guerra, fome, privações.

A Alemanha tomou a frente. O lugar de Merkel no livro da história está assegurado. Ela foi a mulher que em uma década conduziu a Alemanha unida para uma autoconfiança difícil de prever num país que, ainda na virada do século, não tinha certeza de poder dar a si um módico orgulho. Mas, com a decisão de receber sírios e outros refugiados, Merkel se agiganta no cenário europeu, certamente no nível de gigantes alemães do pós-guerra como Konrad Adenauer, Helmut Schmidt e Helmut Kohl – talvez até ultrapassando-os, pois a Alemanha agora é senhora de si, enquanto a deles estava sob alguma tutela dos EUA.

“Ela não quer ser – recusa-se a ser – a pessoa que testemunhou uma séria fratura na União Europeia”, disse-me Julian Reichelt, editor-chefe do Bild Online. “Põe dinheiro para resolver o problema, como no caso da Grécia. Vai admitir um número ilimitado de refugiados. E passará à história como uma grande europeia que defendeu a UE não importam as circunstâncias.”

Quando Merkel decidiu admitir os refugiados, evitou uma violência que poderia sair de controle. Críticos em seu partido Democrata Cristão consideram-na emocional. Mas, para um líder empenhado em preservar a ideia europeia, sua decisão foi racional. Criada na Alemanha Oriental, ela deve sua liberdade à unidade europeia. É uma questão pessoal. A última vez em que a Europa foi inundada por milhões de refugiados foi em 1945, com o colapso do Terceiro Reich. A Alemanha não pode agora dar as costas. Mas a questão exigiu um perfil de estadista – qualidade quase esquecida – e a convicção de que todo risco de terrorismo teria de ser administrado. Os alemães têm aceitado a situação, apesar dos imensos custos. Um partido de extrema direita pode sair beneficiado, mas o consenso é que tinha de ser feito.

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Como resultado, pela próxima geração a Alemanha será mais forte, mais dinâmica, mais aberta. A Alemanha deixou envergonhados seus parceiros europeus, incluindo a Grã-Bretanha. Num ano sombrio, Merkel resgatou a Europa que um dia fechou as fronteiras a judeus fugindo da Alemanha. Quando, na unificação, Kohl falou numa “florescente paisagem” na ex-Alemanha Oriental, foi ridicularizado. Mas aconteceu. A Alemanha pode. Quanto à América que não pode, é outra história. Medo e política eleitoral dão um cruzamento explosivo. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

ROGER COHEN É COLUNISTA DO THE NEW YORK TIMES