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É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment. Escreve quinzenalmente

Opinião|Alianças repugnantes

Atualmente, a polarização é a norma na maioria das democracias do mundo

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Atualização:

“O partido centrista dominante na Suécia reverte sua posição e anuncia que está disposto a se aliar aos nacionalistas de extrema direita.” “Para se manter no poder, o (primeiro-ministro canadense) Trudeau precisa aprender a trabalhar com seus rivais.” “Israel está a caminho de sua terceira eleição em um ano.” “Os protestos de rua levam o primeiro-ministro do Iraque à renúncia.” “O primeiro-ministro da Finlândia renuncia após o fracasso de sua coalizão.” “Nancy Pelosi anuncia que o Congresso prosseguirá com a acusação formal contra Trump.” Essas foram as manchetes da imprensa na semana passada.

Trump abandonou o encontro do G-7 antes do fim e, em uma série de tuítes, criticou Trudeau de “muito desonesto e fraco” Foto: Kevin Lamarque / Reuters

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Existem países nos quais os rivais políticos conseguem entrar em acordo e governar compartilhando o poder. Em outros, o ódio entre os oponentes torna impossível qualquer acordo. Os adversários são encarados como inimigos mortais cujas ideias ou ações os desqualificam para qualquer papel na política ou no governo. A possibilidade de uma coabitação política com quem tenha um programa inaceitável ou, pior, que tenha sido acusado de crimes e abusos, é moral e psicologicamente inaceitável para seus adversários. 

Uma aliança com esses inimigos muitas vezes equivale ao suicídio político daqueles que se atrevem a propô-la. Outras vezes, é a solução. Difícil de engolir, certamente, mas sem o qual o país pode estar condenado à paralisia. Por exemplo, entre 2010 e 2011, a Bélgica passou 589 dias sem que as facções em conflito conseguissem formar um governo.

Atualmente, a polarização é a norma na maioria das democracias do mundo. Embora sempre tenha existido, nos últimos tempos foi exacerbada por várias razões – ansiedade econômica, maior desigualdade, novas tecnologias de comunicação, frustração com o desempenho dos governos e muito mais. E essa divisão da sociedade se reflete toda vez que há eleições. Nenhum grupo político recebe votos suficientes para formar um governo, e a única maneira de conseguir isso é aliando-se a outras forças. 

Nem sempre esse foi o caso. Décadas atrás, a África do Sul e o Chile conseguiram evitar a violência política e manter prolongados períodos de estabilidade e progresso graças a alianças entre inimigos históricos.

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Nelson Mandela conseguiu o que ninguém acreditava ser possível: uma transição pacífica da hegemonia da minoria branca, que impôs o apartheid, para uma democracia na qual a maioria negra alcançou o poder pelas eleições. No Chile, o movimento democrático negociou um acordo com o general Augusto Pinochet que, para muitos chilenos, era inaceitável. O ditador se manteve não só como senador vitalício, mas como comandante intocável das forças armadas, uma vez que impediu os presidentes eleitos de remover chefes militares do cargo. A constituição também garantiu um número de senadores nomeados a dedo pelos militares e endossou a obrigação de alocar automaticamente às forças armadas 10% da receita gerada pelas exportações de cobre, a principal fonte de divisas do país. 

Obviamente, para aqueles que sofreram as perseguições e torturas da junta militar, aceitar tudo isso foi como ingerir um purgante. No entanto, também no Chile, o resultado da negociação permitiu a transição pacífica de uma ditadura para uma democracia.

Como sabemos, nos últimos tempos, nem o Chile nem a África do Sul conseguiram se salvar das convulsões políticas que incendeiam as ruas. Mas ambas as sociedades se beneficiaram de um longo período em que inimigos políticos conseguiram conviver.

O acordo alcançadopermitirá aos chilenos votar se o órgão encarregado de modificar a Carta Magna será uma Assembleia Constituinte Foto: Orlando Barría / EFE

Na África do Sul, após a abolição do apartheid, a economia se expandiu, a inflação caiu e os programas sociais proliferaram, muitos dos quais, pela primeira vez, beneficiaram as maiorias mais necessitadas. 

No Chile, os vários grupos políticos, incluindo os que apoiavam Pinochet e os que foram vítimas, conseguiram entrar em acordo sobre a política econômica. O resultado foi uma das economias mais bem-sucedidas do mundo. Segundo dados do Banco Mundial, em 2000, mais de um terço dos chilenos vivia na pobreza, enquanto em 2017 a proporção de pessoas pobres havia caído para 6,4%.

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Tais sucessos não foram suficientes. Na África do Sul, o desemprego, a imensa corrupção e um estado inepto são fontes de grandes frustrações. No Chile, foram negligenciadas as necessidades de vastos setores da sociedade. Nos dois países, a desigualdade econômica está entre as mais elevadas do mundo.

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O desafio enfrentado pelo Chile e pela África do Sul é suportado por muitas das democracias do mundo: a criação, em uma sociedade dividida, de acordos entre grupos que se odeiam.

É possível imaginar um futuro no qual as democracias do mundo se dividam entre aquelas que estão atoladas em conflitos irredutíveis que as paralisam e causam estagnação e outras que, graças a acordos entre inimigos políticos, conseguem formar governos capazes de governar. No século XXI, aprender a montar governos com pessoas que se odeiam pode ser um requisito para que as democracias prosperem. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

* É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT

Opinião por Moisés Naim

É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowmen

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