Alto Comando militar dos Estados Unidos temeu golpe de Donald Trump, revela livro

No livro 'I Alone Can Fix It (Só Eu Posso Consertar)', jornalistas do Post mostram que chefe do Estado Maior temia um potencial 'momento Reichstag' para manter Trump no poder

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Por Reis Thebault
Atualização:

O Alto Comando militar dos Estados Unidos traçou estratégias para reagir caso o então presidente Donald Trump tentasse um golpe de Estado após as eleições de 2020, segundo o livro "I Alone Can Fix It" ("Só Eu Posso Consertar", em português), que será lançado na próxima terça-feira, 20. Escrito pelos jornalistas Carol Leonnig e Philip Rucker, do The Washington Post, o livro afirma que o chefe do Estado Maior, general Mark Milley, e os demais oficiais planejaram renunciar para não cumprir ordens ilegais.

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Nas últimas semanas do mandato de Donald Trump, o principal líder militar do país se preocupou repetidamente com o que o presidente poderia fazer para manter o poder após perder a reeleição, comparando sua retórica com a de Adolph Hitler durante a ascensão da Alemanha nazista e perguntando aos confidentes se um golpe estava próximo, segundo o livro dos dois repórteres, vencedores do Pulitzer, o mais prestigioso prêmio do jornalismo americano.

Enquanto Trump fazia alegações falsas sobre fraudes na eleição presidencial de 2020, o general Mark Milley ficava cada vez mais nervoso, dizendo a assessores que temia que o presidente e seus acólitos tentassem usar os militares para ficar no cargo.

O chefe do Estado maior, Mark Milley (à direita) participa de encontro do então presidente americano, Donald Trump, commilitares na Casa Branca. Foto: REUTERS/Kevin Lamarque (07/10/2019)

Milley descreveu uma sensação de "revirar o estômago" ao ouvir as alegações falsas de Trump sobre fraude eleitoral, fazendo uma comparação com o ataque de 1933 ao prédio do parlamento alemão que Hitler usou como pretexto para estabelecer a ditadura nazista. "Este é um momento Reichstag", disse o chefe do Estado maior a assessores, de acordo com o livro. "É o evangelho do Führer". Um porta-voz do general não quis comentar.

As partes do livro relacionadas a Milley - relatadas pela primeira vez na noite de quarta-feira pela CNN, antes do lançamento do livro em 20 de julho, oferecem uma janela para os pensamentos do oficial militar de mais alta patente dos EUA, que se via como um dos últimos defensores da democracia durante alguns dos dias mais sombrios da história recente do país.

Os episódios do livro são baseados em entrevistas com mais de 140 pessoas, incluindo altos funcionários do governo Trump, seus amigos e conselheiros. A maioria concordou em falar abertamente apenas sob condição de anonimato, e as cenas relatadas foram reconstruídas com base em relatos de primeira mão e várias outras fontes, segundo os autores.

Milley - que foi amplamente criticado no ano passado por aparecer ao lado de Trump na Lafayette Square, em Washington, depois que manifestantes foram expulsos à força da área - prometeu usar seu cargo para garantir uma eleição livre e justa, sem envolvimento militar. Mas ele ficou cada vez mais preocupado nos dias que se seguiram à eleição de novembro, fazendo várias referências ao início do fascismo no século XX.

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General Mark Milley, em uniforme de combate, acompanha o presidente Trump após manifestantes terem sido reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo Foto: Doug Mills/The New York Times

Depois de participar de uma reunião de segurança em 10 de novembro sobre uma manifestação pró-Trump que protestaria contra a eleição, o general disse temer um equivalente americano dos "camisas-pardas nas ruas", aludindo às forças paramilitares que protegeram os comícios nazistas e permitiram a ascensão de Hitler.

Mais tarde naquela mesma noite, de acordo com o livro, um velho amigo ligou para o chefe do Estado maior para expressar preocupações de que pessoas próximas a Trump estivessem tentando "derrubar o governo".

"Você é um dos poucos caras que estão entre nós e algumas coisas realmente ruins", disse o amigo a Milley, de acordo com um relato repassado a seus assessores. O general ficou abalado, escrevem Leonnig e Rucker, e ligou para o ex-conselheiro de segurança nacional H.R. McMaster para perguntar se um golpe era realmente iminente. "Com que diabos eu estou lidando?", perguntou a ele.

As conversas colocaram Milley no limite, e ele começou a planejar informalmente com outros líderes militares, traçando estratégias de como bloquear a ordem de Trump de usar os militares de uma forma que considerassem perigosa ou ilegal.

Ex-presidente americano Donald Trump em seu primeiro comício após deixar presidência, em Wellington, Ohio Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

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Se alguém quisesse assumir o controle, ele pensou, precisaria ganhar domínio sobre o FBI, a CIA e o Departamento de Defesa, onde Trump já havia instalado aliados. "Eles podem tentar, mas não vão ter sucesso, p...", disse ele a alguns de seus representantes mais próximos, diz o livro.

Nas semanas que se seguiram, o general tentou tranquilizar uma série de membros preocupados do Congresso e funcionários do governo que compartilharam seus temores sobre a tentativa de Trump de usar os militares para permanecer no cargo.

"Tudo vai ficar bem", disse ele, de acordo com o livro. "Teremos uma transferência de poder pacífica. Vamos pousar este avião com segurança. Esta é a América. É forte. As instituições estão se dobrando, mas não vão quebrar ".

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Em dezembro, com rumores de que o presidente estava se preparando para demitir a então diretora da CIA Gina Haspel e substituí-la pelo aliado de Trump, Kash Patel, Milley tentou intervir, diz o livro. Ele confrontou o chefe do Estado-Maior da Casa Branca, Mark Meadows, no jogo anual de futebol americano entre o Exército e a Marinha, ao qual Trump e outros convidados importantes compareceram.

"Que diabos está acontecendo aqui?" Milley perguntou a Meadows, de acordo com o relato do livro. "O que vocês estão fazendo?"

O general Mark Milley e o então presidente dos EUA, Donald Trump, durante partida de futebol americano entre Exército e Marinha. Foto: REUTERS/Jim Young (08/12/2018)

Quando Meadows respondeu: "Não se preocupe com isso", Milley lançou-lhe um aviso: "Basta ter cuidado."

Após a insurreição fracassada em 6 de janeiro, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia), ligou para o general para pedir sua garantia de que Trump não seria capaz de lançar um ataque nuclear e começar uma guerra.

"Esse cara é louco", disse Pelosi sobre Trump, no que o livro relatou que era principalmente um telefonema unilateral. "Ele é perigoso. Ele é um maníaco. "

Mais uma vez, Milley procurou tranquilizar: "Senhora, garanto-lhe que temos freios e contrapesos no sistema", disse ele a Pelosi.

Menos de uma semana depois, enquanto líderes militares e policiais planejavam a posse do presidente Joe Biden, Milley disse que estava determinado a evitar uma repetição do cerco ao Capitólio.

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Manifestantes pró-Trump invadem o Capitólio, em Washington, para defender presidente contra 'fraude eleitoral'. Foto: Evelyn Hockstein for The Washington Post

"Todos nesta sala, seja você um policial, seja um soldado, vamos impedir esses caras para garantir que tenhamos uma transferência pacífica de poder", disse ele. "Vamos colocar um anel de aço em torno desta cidade e os nazistas não vão entrar."

Na posse de Biden em 20 de janeiro, Milley estava sentado atrás do ex-presidente Barack Obama e da ex-primeira-dama Michelle Obama, que perguntou ao general como ele estava se sentindo.

"Ninguém tem um sorriso maior hoje do que eu", respondeu. "Você não pode ver sob a minha máscara, mas eu vejo."