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Americas Quarterly: Como uma ‘corrida armamentista ecológica’ ajudaria a América Latina

Embora existam obstáculos, rivalidade entre EUA e China pode criar uma região mais igualitária e saudável para o meio ambiente

Por Pedro Abramovay e Heloisa Griggs
Atualização:

Durante a Assembleia-Geral da ONU, na semana passada, Joe Biden prometeu que seu governo trabalharia para dobrar a assistência a países em desenvolvimento destinada a combater a mudança climática, chegando a mais de US$ 11 bilhões ao ano em 2024. Sem intenção de ser deixado para trás, o presidente Xi Jinping disse, em uma notável mudança em relação a suas declarações anteriores, que a “China vai apoiar outros países no desenvolvimento de energia limpa e de baixas emissões de carbono, sem construir novos projetos de usinas movidas a carvão no exterior”.

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A crescente rivalidade entre EUA e China foi comparada a uma nova Guerra Fria, com consequências incertas para o restante do mundo. Mas pode haver um lado positivo, se Pequim e Washington acabarem concorrendo para acelerar a transição para uma economia verde na América Latina, e também em outras regiões de renda média e baixa. E se a adaptação à mudança climática se tornar um dos principais campos de batalha da disputa entre grandes potências no século 21?

A ideia não é tão extravagante quanto parece. Pequim e Washington parecem ambas reconhecer o poderio econômico e o prestígio diplomático que virão para aqueles capazes de inventar e distribuir as principais tecnologias limpas do mundo na próxima década. Na verdade, os incentivos podem aumentar, dada a janela extremamente estreita que resta para que o mundo evite mudanças climáticas catastróficas em todo o planeta. Diante deste panorama, as ideias serão mais importantes do que as alianças e os exércitos. Quais seriam, então, os ativos americanos, as vantagens comparativas dos EUA e seus pontos fracos?

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A ambiciosa pauta doméstica de justiça climática de Biden, com foco nos empregos sustentáveis e na justiça para as comunidades mais afetadas pela crise climática, é um ponto muito forte. Começando com um impressionante plano de geração de empregos para a criação de uma economia americana mais limpa e passando pelo compromisso de destinar 40% dos gastos com infraestrutura, energia e mudança climática às comunidades marginalizadas, o governo Biden está mostrando que a transição para uma economia de baixas emissões de carbono pode beneficiar os americanos.

Em tese, isso coloca Washington em uma excelente posição para liderar o combate à mudança climática em outras partes do mundo. Os EUA poderiam ajudar outros países aumentando o financiamento para a adaptação, a transferência de tecnologias e capacidades relevantes (como os modelos preditivos de análise climática), além de ajudar outros países no planejamento e adaptação à mudança climática. De fato, Biden já disse muitas vezes que a mudança climática será uma prioridade da sua política externa, a um ponto sem precedentes na história dos EUA. 

Mas o Brasil é um excelente exemplo de como as medidas de Biden têm ficado aquém desses ideais. Temendo a concorrência em outras áreas, o governo americano parece disposto a ignorar o agravamento da crise climática global decorrente da explosão no desmatamento da Amazônia sob o presidente Jair Bolsonaro, sem falar nos seus repetidos ataques à democracia. No mês passado, enquanto Bolsonaro ameaçava extrapolar os limites constitucionais no Brasil, o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, manifestou apoio à inclusão do Brasil como parceiro de aliança da Otan, enquanto tentava convencer Bolsonaro a não escolher a chinesa Huawei na futura licitação da infraestrutura 5G. 

Provavelmente estimulado pela visita, Bolsonaro encenou posteriormente um desfile militar diante do Congresso, enquanto os parlamentares reunidos decidiam a respeito de polêmicas mudanças no sistema eleitoral, defendidas por ele. O episódio fez muitos se perguntarem quanto à real importância da mudança climática para a diplomacia americana – não somente no Brasil, mas em todo o mundo.

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A política externa climática de Biden segue presa à ideia segundo a qual o progresso na diplomacia climática seria uma questão de reduzir as emissões – sem trazer para a barganha os elementos de justiça social que integram a mistura. Seria animador ver o governo Biden traduzir muitas das mesmas ideias por trás de sua política climática doméstica para uma política climática externa que busque gerar mais empregos sustentáveis e criar economias mais includentes onde as florestas tropicais seguem de pé. 

O governo Biden poderia estabelecer parcerias com os países da região que mais se destacam neste quesito, como Chile, Colômbia e Costa Rica, para garantir que suas ambiciosas políticas climáticas enfrentem as dimensões sociais da transição, aumentando a probabilidade de sucesso nos países que enfrentam significativa insatisfação do público em meio a um desafiador contexto econômico causado pela pandemia.

O foco em trazer justiça para as populações vulneráveis mais afetadas pela crise climática deve envolver todas essas iniciativas, como ocorre atualmente na política climática doméstica dos EUA. El Salvador, Guatemala e Honduras estão entre os países do mundo mais vulneráveis à mudança climática. Uma iniciativa de geração de empregos para o desenvolvimento de uma infraestrutura sustentável e justa, permitindo às comunidades vulneráveis que se adaptem, deveria ser o foco da política do governo Biden para remediar as causas que estão na raiz da imigração a partir do Triângulo do Norte.

Para o Caribe, a crise climática é uma ameaça existencial. O governo Biden pode ajudar a centralizar a voz e o poder das populações vulneráveis ao se antecipar aos impactos climáticos, ajustando-se e resistindo a eles por meio de mais assistência e financiamento climático. Isto pode incluir um foco em microrredes renováveis, distribuídas e controladas pela comunidade, garantindo a sustentabilidade da energia após grandes desastres climáticos.

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Uma política externa voltada para a justiça climática tornaria os EUA mais atraentes que a China para os países de renda média e baixa enfrentando impactos climáticos cada vez mais intensos. Apesar de suas imperfeições, a democracia possibilita que os países contemplem diferentes pontos de vista, lutando para dar voz e poder às populações marginalizadas sobre quem incidem os piores impactos climáticos.

A Iniciativa do Cinturão e da Estrada promovida pela China, com o objetivo de ampliar poder e influência do país pelo mundo, irritou muitos governos na África e em outros lugares, que agora se veem endividados graças a projetos de infraestrutura mal planejados e mal executados. Populações indígenas e marginalizadas dos países onde terras foram apropriadas para projetos de infraestrutura manifestaram sua legítima preocupação e insatisfação diante de seus governo. 

Projetos chineses de usinas de carvão enfrentaram resistência da sociedade civil em Bangladesh, Quênia, Vietnã e outros países. Ao trazer operários chineses para a construção dos projetos, em vez de contratar trabalhadores locais, essas iniciativas provocaram raiva e ressentimento. Esses desafios e fracassos refletem como o sistema autoritário chinês é simplesmente mal equipado para equilibrar os interesses de participantes diferentes em tais contextos.

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O que isso significaria para o envolvimento de Biden com os dois maiores emissores de gases-estufa da América Latina, México e Brasil? Sob o presidente Andrés Manuel López Obrador, o México deixou de ser um líder nas pautas climáticas, aumentando seu consumo de carvão e petróleo no momento em que governos de todo o mundo tentam se afastar do carvão e de outros combustíveis fósseis. Sendo o maior parceiro comercial dos EUA, o México será muito afetado pela guinada americana em busca de uma economia verde. 

Com México e EUA reiniciando o diálogo econômico de alto nível, uma abordagem voltada para os empregos e a população na transição do engajamento do governo Biden com o México envolvendo o clima tem mais chance de sucesso, beneficiando ambas as economias, do que abordagens de mão mais pesada, como a inclusão de meras metas climáticas nos acordos comerciais.

No Brasil, onde o foco do governo Biden na proteção da floresta tropical é bem-vindo, Bolsonaro e seu governo não são parceiros confiáveis para tais iniciativas. Ignorar os repetidos ataques de Bolsonaro às instituições democráticas do Brasil na busca de um acordo climático enfraquece a principal vantagem comparativa dos EUA em relação à China: sua capacidade de mostrar ao mundo que a democracia é a melhor maneira de enfrentar a crise climática e outros importantes desafios do século 21.

Em vez disso, na esteira de recentes encontros entre o enviado especial da presidência dos EUA para o clima, John Kerry, e de Sullivan com governadores estaduais brasileiros, os EUA deveriam engajar um conjunto mais amplo de interlocutores para conter o desmatamento, incluindo a sociedade civil, os governos sub-nacionais e o setor privado. Em particular, Biden deve aprofundar seu engajamento com as autoridades estaduais e locais na Amazônia, apoiando seus esforços para fazer avançar uma pauta que proteja as florestas tropicais e viabilize o sustento da sua população. Um exemplo disso é o Plano de Recuperação Verde da Amazônia Legal, que reúne um consórcio de governadores da região de todo o espectro político para conter o desmatamento e construir uma economia inclusiva mantendo a floresta no lugar.

O foco do presidente Biden no clima, enquanto prioridade da sua política externa, é impressionante e bem-vindo. Trazer à sua política climática externa uma abordagem otimista e voltada para as pessoas é algo que pode favorecer os EUA na sua disputa estratégica com a China e avançar uma transição climática justa para países de renda média e baixa em todo o mundo.

* ABRAMOVAY É DIRETOR REGIONAL DA OPEN SOCIETY FOUNDATIONS PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE *GRIGGS É VICE-DIRETORA DO PROGRAMA LATINO-AMERICANO DA INICIATIVA PELA JUSTIÇA CLIMÁTICA DA OPEN SOCIETY FOUNDATIONS

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