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Amor e ódio na guerra

Por Adriana Carranca
Atualização:

Quando perguntei ao jovem Abdul, estudante de literatura inglesa brilhante e cheio de sonhos, por que não deixava a Síria, eu não previa resposta singela. Mas foi isso o que ele me deu: estava apaixonado por uma moça do vilarejo vizinho, no norte do país. É um território dilacerado, atualmente sob controle de milícias curdas apoiadas pelos EUA no combate ao Estado Islâmico, ao mesmo tempo em que mantêm aliança estratégica com o regime de Bashar Assad, mas cobiçado por todos os lados por suas riquezas minerais. O cenário em ambos os lados da estrada, desde a fronteira com o Iraque, é de campos dourados a perder de vista pontilhados por grandes lagos negros - o petróleo que financia a guerra. A tradição impede Abdul e sua pretendente de emigrar sem antes estar casados. Casar requer dinheiro para o dote e o sustento do casal, mas a guerra arrasou a economia e acabou com os empregos. Adbul não conseguiu se formar porque as aulas na Universidade de Hasakah foram interrompidas desde que o EI avançou sobre áreas da província. Ele vive torturado entre a ideia de partir e o desejo irracional de ficar, apesar dos riscos. Mais da metade da população da Síria deixou o país desde o início da guerra. Os que teimam em ficar ou não têm condições de emigrar padecem à espera de uma solução para o conflito - que parece cada vez mais distante. A intervenção russa em socorro ao presidente Bashar Assad, que hoje controla apenas 20% do território, deve agravar e estender o conflito. O poderio militar do Kremlin dá sobrevida ao regime e muda o equilíbrio da guerra, polarizada entre os xiitas alinhados a Assad - que tem apoio do Irã, do libanês Hezbollah e do governo de Bagdá, além de Moscou - e as monarquias sunitas que sustentam grupos como a Frente Al-Nusra e, veladamente, o EI. A Rússia enfrenta problemas com países de maioria muçulmana do norte do Cáucaso e compartilha com os EUA o temor de uma insurgência islâmica em seu território. Mas, como aliada de Assad, tem em sua mira também grupos moderados de oposição ao presidente sírio, que vinham sendo treinados e financiados pelos EUA. A operação na Síria é a maior fora dos limites da antiga União Soviética desde a invasão do Afeganistão em 1978 e coloca novamente em jogo o poder de influência global das duas maiores potências militares. Os tempos são outros, não vivemos mais a Guerra Fria, o que ameaça o Ocidente não é o comunismo, mas o terrorismo. Mas o histórico da guerra afegã deveria servir como alerta. No Afeganistão, a invasão soviética e o contra-ataque dos EUA, que financiou jihadistas afegãos ao lado da Arábia Saudita de Osama bin Laden, levou a uma década de conflito sangrento que deixou entre 850 mil e 1,5 milhão de mortos e terminou com a vitória dos jihadistas, a ascensão do Taleban ao governo e a criação da Al-Qaeda. É provável que os EUA não cometam o mesmo erro do passado, diante da ameaça do EI, mas analistas acreditam que os grupos moderados de oposição a Assad podem se unir aos radicais contra a ameaça da Rússia, criando um cenário semelhante ao ocorrido no Afeganistão. É cedo para prever os resultados disso, mas tudo indica que a guerra na Síria está longe de chegar ao fim. Há dois dias, Abdul me disse que estava noivo, "efeito colateral do atentado" a bomba do EI contra o prédio em que acompanhava a colunista, em seu primeiro trabalho como tradutor. A explosão do caminhão-bomba deixou pelo menos onze mortos, a poucos metros de distância dele. A proximidade da morte deu-lhe coragem para seguir com o pedido de casamento, mesmo sem condições financeiras para isso ou perspectiva de futuro. O pai aceitou. Muitas jovens não têm a mesma sorte da filha porque a guerra levou embora principalmente os homens - mortos em combate ou refugiados em outros países. As famílias não permitem que elas emigrem sozinhas. Abdul e a noiva devem se casar em dois meses e deixar a Síria juntos.

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