Análise: A diplomacia da pólvora

Visão sectária e irracional promove o desmoronamento da diplomacia brasileira e traz prejuízos aos interesses nacionais

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Por Hussein Kalout
Atualização:

Como no clássico de García Márquez, antevíamos o declínio inevitável do Brasil nas relações internacionais. A crônica de uma morte anunciada, no caso, foi a crônica da morte da política exterior do país. Diferentemente do realismo mágico da prosa magistral de Gabo, contudo, o que assistimos foi ao surrealismo aplicado à realidade, com uma anti-diplomacia capturada por visão sectária e operada em nível de rudeza e irracionalidade sem precedente.

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Em contraste com a ficção, a “obra” da política vigente não diverte nem maravilha, mas constrange e envergonha, não sem causar elevados prejuízos ao interesse nacional nos mais variados tabuleiros. Em queda livre, o país vai se tornando espécie de “rejeitado” universal.

No início deste ano, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Rezek, José Serra, Celso Lafer, Celso Amorim, Aloysio Nunes Ferreira, Rubens Ricupero e este escriba nos juntávamos para denunciar o caráter inconstitucional da política externa. Sublinhávamos ponto a ponto as violações ao artigo 4˚ da Constituição Federal (inclusive ao seu parágrafo único).

Publicado no dia 8 de maio de 2020 em quatro grandes jornais do país – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico –, o artigo exortava o governo Bolsonaro e o seu ministro do exterior a mudarem com urgência o rumo da política exterior do país antes que os prejuízos, que já eram palpáveis, se tornassem irreversíveis.

Àquela altura já prevíamos o fundo do poço, porém, não imaginávamos que poderia ser mais fundo e mais obscuro do já era. Nos últimos dias, o presidente da República e seu círculo íntimo se encarregaram de esfolar, em carne viva, a nossa diplomacia para quem quisesse ver e ouvir. Em um dia justificou-se como ato legítimo o ataque desferido contra China e, em outro, sublinhou-se que o novo presidente dos EUA foi eleito de forma fraudulenta. É difícil imaginar que haja uma grande estratégia por trás de toda essa incontinência verbal anti-diplomática.

Se já estávamos isolados pelos europeus, agora o governo brasileiro ampliou o arco de desafetos – agregando apenas e tão somente EUA e China a esse conjunto de forças internacionais. A sacada genial, o drible desconcertante, a manobra perfeita para quem quisesse transformar o Brasil num pária concretizou-se à perfeição, sob aplausos da claque de adeptos de teorias da conspiração e extremistas de toda sorte.

Existem dois problemas estruturais de como o Planalto processa os seus interesses e como guia a sua ação em matéria internacional. Em primeiro lugar, na visão do núcleo duro do círculo presidencial, o interesse do Estado brasileiro e o seu projeto de poder são moeda que compõem a mesma face – ou ao menos se busca convencer parte do eleitorado brasileiro com essa fábula.

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Em segundo, a política externa em si pouco importa se ela não for um artefato gerador de ressonância para fortalecer esse projeto de poder e,  consequentemente, mobilizar a minguante base de apoio e preservar adeptos. Fica plasmado, cada vez mais, que o compromisso do governo brasileiro nas relações internacionais não é de Estado para Estado, mas, sim, da relação daquele Estado para com o projeto de poder do presidente. Ao cabo, não é o bolsonarismo que precisa se adaptar aos interesses estratégicos da política externa do Estado brasileiro, senão, a política externa é que precisa se adaptar aos desejos da base bolsonarista.

Jair Bolsonaro e ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo Foto: Dida Sampaio/Estadão

Esses dois problemas explicam, em certo sentido, a forma como a relação com os EUA e com a China são guiadas. Ao público menos ilustrado, se procura vender a animosidade com os chineses como uma ação de benfeitoria em prol da proteção do povo brasileiro, já que o país asiático é (em sua visão) disseminador da covid-19, do comunismo e de padrões políticos antidemocráticos.

Esse mesmo público não possui os pré-requisitos necessários para discernir de forma crítica sobre a ambiguidade de tal discurso. Alguns podem até se perguntar por que então deveríamos seguir vendendo produtos agrícolas à China ou hesitar em excluir os chineses do 5G se, de fato, a narrativa sobre o gigante asiático corresponde inteiramente a verdade, certo?!

A incongruência também encontra esteio na própria relação com os EUA. Quando se percebeu que a derrota de Trump era iminente, o incumbente do Itamaraty tentou reformular o discurso em uma frustrada tentativa de aproximação com o time do Presidente-eleito, Joe Biden – enfatizando que o Brasil sempre buscará uma relação estável e produtiva com Washington independente da cor do governo (razoável!) – não funcionou! Esqueceu-se que o núcleo duro do círculo presidencial passou dias a fio demonizando Biden para a base bolsonarista – tracionando a tese de fraude na eleição e impulsionando teorias conspiratórias em que o próprio presidente Biden era colocado como alguém contra os valores religiosos e rotulando-o como simpatizante do comunismo.

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O grau de rudeza é ainda mais estonteante quando na gramática diplomática presidencial propaga-se a estapafúrdia tese de que o Brasil não precisa da China, mas é a China que precisa do Brasil. Esse mesmo padrão de pensamento guia a posição do Planalto em relação ao Biden: são os americanos que precisam do Brasil para bloquear a participação chinesa do 5G e não o Brasil que precisa dos EUA.

Em resumo, imaginar que China e os EUA precisam do Brasil mais do que o Brasil precisa de ambos é de um primitivismo intelectual e estratégico incomensuráveis. Enfim, a tensão com China, EUA e europeus pode até servir circunstancialmente para galvanizar essa base de apoio bolsonarista, porém, cedo ou tarde, as consequências do isolamento internacional serão sentidas no bolso dos brasileiros.

Como já se sabe, ativismo diplomático não é mesmo que política externa. Promover eventos com atores de baixa relevância internacional (enquanto deveria estar focado em construir uma estratégia de como lidar com chineses, europeus e americanos) apenas para demonstrar que o país não está se tornando um “rejeitado” serve exclusivamente para enganar os próprios promotores dessa diplomacia da pólvora.

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* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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