Análise: as lições de civismo e o belo adeus de Obama

No crepúsculo de sua presidência, Barack Obama não deverá aprovar muitas leis importantes. Entretanto, ele está nos deixando uma clara e poderosa lição de civismo.

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Por Frank Bruni e NYT
Atualização:

Basta ver o discurso aos recém-formados da Universidade Howard, no último fim de semana. Embora repleto das costumeiras congratulações pelo árduo trabalho, não deixou de conter admoestações contra os erros que vê alguns jovens cometerem.

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Ele os repreendeu por demonizar os inimigos e silenciar os adversários. Ele os advertiu contra uma tendência exagerada a lamentarem e uma indignação desprovida de perspectiva.

“Se vocês tivessem de escolher uma época para existir, nas palavras da escritora negra Lorraine Hansberry, ‘jovens, talentosos e negros’ nos Estados Unidos, vocês escolheriam exatamente esta época”, ele afirmou. “Negar até onde nós chegamos, seria um desserviço à causa da justiça.”

Ele não disse que se considerassem satisfeitos, e por outro lado não estava se dirigindo apenas ou principalmente a eles. Estava se dirigindo a todos nós - aos Estados Unidos - e dizendo: basta. 

Basta à política da identidade do grupo, que pode deixar de lado o propósito comum. Basta ao partidarismo tão casuísta que escoa no ódio. Basta ao som ensurdecedor e à fúria que cega no nosso debate público. Estas coisas poderão servir ao entretenimento, não ao entendimento, e constituem um obstáculo para o progresso.

Seu discurso em Harvard foi uma extensão do último que pronunciou em janeiro sobre o Estado da União, e dos que proferiu na Assembleia-Geral em Illinois, em fevereiro, nove anos depois de anunciar sua candidatura histórica à presidência. O discurso de Illinois, belíssimo e repleto de sabedoria, recebeu menos atenção do que merecia.

“Precisamos criar uma política melhor - uma política que seja menos espetáculo e mais uma batalha de ideias”, disse então. Do contrário, alertou, “vozes radicais preencherão o vazio”. A atual campanha presidencial dá toda razão a Obama.

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Os seus detratores e os céticos provavelmente ouvem em tudo isto uma arrogância professoral que o persegue e os alienou anteriormente. Por outro lado, é possível discordar legitimamente quanto ao grau em que ele foi um agente e ao mesmo tempo vítima do ambiente envenenado que ele deplora. Os atos da sua administração nem sempre foram tão eminentes quanto suas palavras.

Mesmo assim, todos nós devemos ouvi-lo, por diversas razões. Uma delas é que ele não está apenas atacando os adversários. Mas está lançando um desafio a determinados grupos - aos estudantes universitários afro-americanos - que o apoiaram energicamente e junto aos quais ele desfruta de uma real credibilidade.

“Devemos ampliar nossa imaginação moral”, disse aos estudantes negros de Harvard, implorando-os para que reconheçam “o branco de meia-idade que vocês acham que goza de todas as vantagens, mas que nas últimas décadas viu seu mundo virar de cabeça para baixo por causa das mudanças econômicas, culturais e tecnológicas, e se sente impotente para deter isso. Vocês precisam entrar na cabeça dele, também”.

Apenas duas semanas antes, numa reunião em Londres, ele criticara o movimento Black Lives Matter, afirmando que, quando “os políticos eleitos ou as pessoas que se encontram numa posição para empreender mudanças se dispõem a sentar ao seu lado, vocês não podem continuar berrando contra elas”.

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Outra razão para ouvirmos Obama é a precisão e a eloquência com a qual ele diagnostica os males atuais. Em Illinois, observou que embora o partidarismo mau exista desde sempre, na nossa era digital ele se alimenta da capacidade dos eleitores de se preocuparem apenas com as informações vindas das fontes e da mídia social que ecoam e amplificam seus preconceitos.

“Nós podemos escolher os nossos fatos”, afirmou. “Não temos uma base comum a respeito do que é verdadeiro e do quer não é.” Os grupos de defesa dos direitos frequentemente pioram as coisas, acrescentou, “procurando manter seus integrantes numa agitação máxima, assegurando-os da retidão da sua causa”.

Em Harvard, Obama insistiu que a mudança “exige que ouçamos aqueles de quem discordamos, e estejamos preparados para o compromisso”. “Se vocês pensam que a única maneira de avançar consiste em não se comprometer na medida do possível, talvez se sintam bem consigo mesmos, gozarão de certa pureza moral, mas não alcançarão o que desejam”, continuou. “Portanto, não tentem afastar as pessoas. Não tentem excluí-las, independentemente de quanto discordarem delas”.

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A esta altura do mandato, sua mensagem está longe de visar algum proveito próprio a respeito do clima político que almeja pessoalmente para poder atuar e do qual gostaria de se beneficiar, e sim do clima que beneficiará a todos. Se isto chama a atenção para as melhoria que prometeu, mas não pôde realizar, ele está em paz consigo mesmo. Mas precisa continuar falando. E assim vai elaborando seu adeus sincero, sentido, uma reflexão sobre a conturbada democracia que, temo, se perderá no clamor do combate mortal entre Donald Trump e Hillary Clinton. Com isto, ele fecha completamente o círculo, que começou com a audácia e se encerra com a tenacidade da esperança. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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