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Análise: Crise na Bolívia não se encaixa em nenhuma narrativa simplista

Durante seu governo, o país cresceu mais rápido que a maioria dos vizinhos, mas Evo vinha se aproximando da cartilha autoritária

Por Ishaan Tharoor
Atualização:

A dramática renúncia do ex-presidente da Bolívia Evo Morales e sua fuga para o asilo no México se transformaram em uma espécie de Teste de Rorschach da política do hemisfério. Muitos na esquerda estão convencidos de que Evo foi destituído por um golpe militar, pois a insurreição da polícia e das Forças Armadas obrigou o governante a renunciar. Nessa perspectiva, seu destino foi o mesmo de uma longa e trágica linhagem de populistas de esquerda latino-americanos traídos por reacionários apoiados pelos Estados Unidos.

Por outro lado, observadores e políticos à direita saudaram o que está ocorrendo na Bolívia como uma restauração da democracia e uma vitória contra o socialismo hegemônico no continente. Evo, na visão destes, seria o próximo Nicolás Maduro, o demagogo venezuelano empenhado em manter o poder independentemente dos danos ao país e à sua frágil democracia. Uma rebelião boliviana o expulsou do cargo.

Evo Morales em viagem ao México após aceitar oferta de asilo político Foto: Ministério das Relações Exteriores do México / AP

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Mas nenhuma dessas versões conta a história completa. Por enquanto, a Bolívia vive um perigoso estado de limbo político, amargamente dividida pela perspectiva bastante provável de novos confrontos entre apoiadores e opositores de Evo. 

Jeanine Áñez, senadora de direita, proclamou-se presidente interina do país, papel ao qual tinha direito constitucional depois que Evo e seus principais aliados renunciaram e a deixaram como a próxima na linha sucessória. Áñez prometeu realizar novas eleições em breve, embora não esteja claro se Evo e seu partido poderão participar, caso haja eleições. O Movimento pelo Socialismo, partido do ex-presidente, continua tecnicamente com a maior bancada em ambas as câmaras legislativas da Bolívia. Imagens divulgadas na quarta-feira mostraram Adriana Salvatierra, ex-presidente do Senado boliviano e aliada de Evo, sendo agredida pelas forças de segurança ao tentar ocupar seu assento na Câmara depois da renúncia no fim de semana.

A crise ainda pode ser atribuída a Evo. No poder desde 2006, ele tomou a decisão de ignorar o resultado de um referendo constitucional que em 2016 rejeitou, por margem estreita, sua tentativa de abolir os limites do mandato presidencial. A decisão de um tribunal constitucional lotado com seus partidários permitiu que ele concorresse ao quarto mandato. Mas o primeiro turno da eleição presidencial de 20 de outubro foi tão recheado de irregularidades que uma auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA) – bloco continental questionado por setores da esquerda – concluiu que havia sinais de “manipulação clara”. Semanas de protestos em massa contra Evo culminaram com a polícia e o Exército exigindo sua renúncia. Evo não tinha escolha a não ser obedecer, mas, em declarações feitas no México na quarta-feira, ele disse estar determinado a voltar para casa e pediu um diálogo nacional para resolver o conflito.

Jeanine Áñez se declarou presidente interina da Bolívia após a renúncia de Evo Morales Foto: Jorge Bernal / AFP e Carlos Jasso / Reuters

“Se os militares, que recomendaram a renúncia de Evo para evitar mais derramamento de sangue, permanecerem no poder, será um golpe”, observou Andrés Oppenheimer no Miami Herald. “Mas se a linha sucessória prevista pela constituição for respeitada e um presidente interino pedir uma nova eleição dentro de 90 dias, será uma medida constitucional para invalidar a tomada de poder por parte de Evo.”

Os partidários de Evo rejeitaram reconhecer a legitimidade da presidência interina de Áñez, aumentando os temores de mais agitação social.

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“Evo poderia ter preparado novos líderes para ocupar seu lugar, mas, em vez disso, sabotou qualquer um que pudesse fazê-lo. Poderia ter cumprido seu terceiro mandato, deixado o cargo com um grande legado e até mesmo voltar a se candidatar em cinco anos, se quisesse (os limites aos mandatos presidenciais se aplicam apenas a mandatos consecutivos)”, escreveu Jim Shultz, americano especialista em Bolívia que viveu no país por duas décadas e conheceu Evo antes mesmo de ele chegar à presidência. “Mas ele estava disposto a atropelar as regras básicas da democracia para se manter no poder, e as pessoas sabiam disso e, no final, os bolivianos se rebelaram, como de costume.”

O presidente americano, Donald Trump, comemorou os últimos acontecimentos na Bolívia e colocou Evo ao lado de seus outros vilões latino-americanos. “Esses eventos mandam um forte sinal aos regimes ilegítimos da Venezuela e da Nicarágua, afirmando que a democracia e a vontade do povo sempre prevalecerão”, disse. “Agora estamos um passo mais perto de um hemisfério ocidental completamente democrático, próspero e livre”.

Mas, ao contrário de Maduro, o governo de Evo não foi uma lástima. Como escreveram meus colegas no mês passado, seu comando sobre uma nação pobre, mas riquíssima em recursos, privilegiou as políticas redistributivas. “A economia boliviana está reduzindo a diferença em relação ao restante do continente, crescendo mais rápido que a maioria dos vizinhos nos últimos 13 anos. Enquanto isso, os governos que adotaram políticas de mercado – principalmente na Argentina e no Equador – enfrentam caos econômico e político”, observou Anthony Faiola, do Washington Post. Ele acrescentou: “Até mesmo o FMI, grande defensor do livre mercado, admite que os socialistas da Bolívia foram mais eficazes no combate à pobreza extrema do que qualquer outro governo sul-americano, reduzindo-a de 33% da população em 2006 para 15% em 2018”.

Mas nos últimos anos Evo vinha se aproximando da cartilha autoritária, minando alguns dos movimentos sociais e indígenas que antes sustentavam seu governo e perseguindo antigos aliados que se voltaram contra ele. Alguns especialistas tentaram ver sua derrota por uma lente luminosa e global. “A inspiradora vitória do povo boliviano tem um grande significado para muito além da América Latina”, escreveu o colunista liberal Yascha Mounk na Atlantic. “A súbita perda de apoio de Evo não deve assustar apenas ditadores de esquerda em apuros, como Maduro na Venezuela. Deve também aterrorizar populistas de extrema-direita, como Orbán, da Hungria, ou Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, que ainda parecem firmes no poder.”

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Esta última sugestão de Mounk faz sentido, em teoria, mas fica estranha quando você pensa nos detalhes. Orbán e Erdogan são ultranacionalistas que encontrariam um certo grau de parentesco ideológico não com Evo, mas com os que estão na vanguarda de sua deposição.

Antes de assumir os poderes presidenciais, Áñez caminhou até o Parlamento segurando uma Bíblia e proclamando seu retorno ao centro do poder no país – um golpe deliberado nas comunidades e tradições indígenas celebradas por Evo, o primeiro presidente indígena do país. Uma pesquisa pelas mídias sociais da presidente interina encontrou comentários que zombavam das práticas indígenas. Vídeos virais mostraram as forças de segurança bolivianas removendo a Wiphala, bandeira que representa os povos indígenas dos Andes, que ficava ao lado da bandeira boliviana em seus uniformes. Um pastor ligado a uma importante figura da oposição declarou que os salões do poder estavam livres do espírito de Pachamama (a mãe-terra). É difícil entender por que Orban, um virulento nacionalista cristão que nutre um desprezo semelhante pelas comunidades mais oprimidas de seu país, ficaria perturbado com essas cenas.

Assistindo a tudo isso desde o México, Evo afirmou que foi vítima de “um golpe racista e fascista”. Agora, seu país prende o fôlego com o que pode acontecer. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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* É COLUNISTA

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