Análise: Entre o núcleo ideológico e a ala militar

Ocupação de cargos na Esplanada dos Ministérios ficou reduzida a indicados seja núcleo ideológico e pelos militares

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Por Hussein Kalout
Atualização:

O Brasil está irreconhecível. Nos tornamos um país bestial. A solidariedade, própria do povo brasileiro, não encontra mais espaço nas relações sociais. Ninguém quer ouvir. A radicalização e o extremismo passaram a orientar a vida da população. Como chegamos a esse ponto?

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Em poucos anos, a História fará o seu implacável julgamento da reunião de 22 de abril de 2020. É bem possível que ela, a História, tenha um corte bem mais impiedoso do que o ácido telúrico que embebeda a realidade de hoje.

No início do governo, criou-se expectativa de que os militares iriam tutelar o Presidente da República. Descobriu-se, no entanto, que o capitão é “intutelável”. A disciplina jamais compôs o seu repertório de atitudes. Alguns poderiam dizer que o Presidente Ernesto Geisel avisou ainda nos idos dos anos oitenta. Agora é tarde...

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito porque o povo decidiu revogar a sua confiança no combalido PT – e nos demais partidos. Foi voto de rejeição que elegeu o inquilino do Planalto, por meio da simples transferência de votos. A eleição de 2018 esteve longe de ser marcada por embate em torno de agendas programáticas – e é bem possível que 2022 repita a tragédia da eleição anterior se a polarização não for rompida, ou ao menos amainada. A manutenção do status quo interessa a quem está no poder e a quem possui expectativa de recuperá-lo.

O presidente Jair Bolsonaro Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em ambiente que ainda guarda com tibieza alguns traços democráticos, é válida a discussão se o governo hoje é “militar” ou se é civil, ainda que composto por militares. O fato é que nas circunstâncias atuais, existem somente duas opções: ou prevalecem os indicados do “gabinete do ódio”, ou os profissionais indicados pela chamada “ala militar”. 

Portanto, a querela que se procura impulsionar sobre a presença desproporcional de militares no governo seguirá, no fundo, girando em torno de um falso debate. Não se trata de negar a realidade, mas de compreender quais são as possibilidades existentes e o que rege as escolhas do governo hoje. A ocupação de cargos na Esplanada dos Ministérios ficou reduzida a indicados seja pelo núcleo ideológico, seja pelos militares.

Da perspectiva do Planalto, a opção entre indicações de um polo ou do outro nada mais é do que fórmula de redução de vulnerabilidades. O quadro atual no Ministério da Saúde é emblemático sob esse aspecto.

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É importante relembrar que o governante de turno alugou partido político que não tinha plano de governo muito menos quadros técnicos em suas fileiras. Todo e qualquer recrutamento fora dos canais ideológico e militar configura retumbante exceção – concedida à pasta da Economia e outrora à da Justiça. 

Na conjuntura, duas evidências sobressaem: 1) não haverá espaço, no momento, para a designação de profissionais para a pasta da Saúde que preconizem a primazia do conhecimento científico sobre o embate político-ideológico; 2) a falange bolsonarista encontrou na pandemia fenda perfeita para decantar quem ficará no barco e quem será arremessado para fora – Mandetta, Moro, Teich e Regina são apenas a prova disso.

A manutenção do General Eduardo Pazuello como interino da pasta da Saúde reflete o silencioso entrechoque entre a razão, representada pelos militares, e o radicalismo ideológico, cultivado pela legião bolsolavista – alguns militares decidiram embarcar e se submeter à ala ideológica.

Nos desígnios que o Palácio do Planalto projeta, a função da Saúde será, essencialmente, cuidar da infraestrutura logística e da transferência de material médico-hospitalar – e não mais da formulação de políticas públicas sanitárias e com guarida científica. Nessas circunstâncias, o General Pazuello é o nome apropriado para a tarefa. 

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Responder por logística e infraestrutura requer contar com equipe pronta e conhecedora dos modais de transporte. Por isso, a escalação de número elástico de militares – apesar de controversa – pode apresentar certo sentido lógico.

Os militares estão convencidos de que a única forma de bloquear as indicações olavistas é pleitear os próprios nomes junto ao Presidente da República, que não se vê em condições de declinar sugestões dos fardados dada sua fragilidade política.

E em guerra por nomeações disputada palmo a palmo, é melhor ficar por ora com os militares à frente da Saúde. Tentem imaginar por um instante se figuras como Damares, Ernesto, Salles ou Weintraub fossem escaladas para gerir a pasta da Saúde... 

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*HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.