Análise: Joe Biden prometeu unir os Estados Unidos. Isso ainda é possível?

Presidente eleito prometeu curar as feridas, mas essa tarefa exigirá dele tudo que aprendeu em 48 anos de política – e um pouco mais

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Por Dan Balz
Atualização:

O presidente eleito Joe Biden passou três décadas em busca da presidência, mas é incerto que ele tenha imaginado os desafios que herdará quando fizer o juramento de posse. O que o aguarda exigirá que ele explore tudo o que aprendeu em mais de quatro décadas em cargos públicos e muito mais.

A pauta da questão por si só é esmagadora, da pandemia do novo coronavírus a uma economia enfraquecida e desigual, às ameaças representadas pela mudança climática, aos gritos por um acerto de contas atrasado sobre raça e justiça. Essas estão apenas no topo da caixa de entrada do presidente eleito e, juntas, podem consumir a maior parte de seu mandato inicial.

A vice-presidente eleita americana Kamala Harris e o presidente eleito Joe Biden na última sexta-feira, 6 Foto: REUTERS/Kevin Lamarque

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Além disso, as condições sob as quais ele assumirá a presidência aumentarão significativamente as demandas sobre suas capacidades de liderança. Biden concorreu com a promessa de unir o país, e esta eleição mostrou mais uma vez como os Estados Unidos estão divididos. Ele fez campanha para restaurar o senso de calma e normalidade na Casa Branca após quatro anos de discórdia do presidente Donald Trump. Ele concorreu prometendo superar quase exatamente o que herdará agora - tanto a divisão profunda entre as pessoas quanto a toxicidade no corpo político.

Se ele falhar nesse objetivo primordial, sua presidência pode terminar em decepção e estagnação. Se ele cumprir essa promessa, sua presidência poderá ser lembrada tanto como restauradora quanto transformadora. Ele falou sobre si mesmo como uma figura de transição que traria uma nova geração, mas no momento presente suas ambições devem ser muito mais do que isso.

Os céticos, incluindo alguns de seus rivais na indicação dentro do Partido Democrata, viram sua conversa a respeito de unidade e bipartidarismo como reflexões ingênuas de um político de uma época passada. Para Biden, foram uma expressão genuína de quem ele é e como deseja liderar como presidente. Mas a campanha amarga e o que os resultados da eleição em estado após estado ressaltaram é que ele iniciará sua presidência como o líder de dois EUA em conflito de maneiras fundamentais.

A esperança de Biden e de muitos democratas era que a eleição resultasse no repúdio mais amplo possível ao presidente em exercício, uma surra que mostraria que Trump e o trumpismo eram uma aberração, um desvio de quatro anos até que o país voltasse a si. Não foi assim que aconteceu. Trump não caiu sem luta e a vitória de Biden foi alcançada com margens estreitas em uma série de estados.

Em sua vitória projetada, Biden foi capaz de reconstruir partes essenciais da muralha azul do norte dos democratas que Trump demoliu em 2016. Biden levou Wisconsin, Michigan e o prêmio final, Pensilvânia, que o colocou no topo. Ainda para seu crédito, ele está liderando em dois estados no Cinturão do Sol, Arizona e Geórgia. As vitórias nessas duas disputas, mesmo a mais apertada, representariam uma evolução do mapa eleitoral com implicações significativas para o futuro.

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Biden pode ter sido o único democrata entre as duas dúzias de homens e mulheres que buscaram a nomeação e que era capaz de fazer o que ele fez, que era manter os principais estados no Bloco do Norte, com populações substanciais de trabalhadores brancos sem diploma universitário e, potencialmente, expandir-se para o sul e o sudoeste, onde as mudanças demográficas estão alterando a política.

Essa possibilidade foi uma das razões pelas quais ele se tornou a escolha de consenso em um partido desesperado para negar um segundo mandato a Trump , mesmo que muitos que o apoiassem estivessem apenas moderadamente entusiasmados com sua candidatura. Nada disso tira seu sucesso. Ele fez o que os democratas mais queriam, que era acabar com a presidência de Trump.

Agora, no entanto, Biden enfrenta uma série de obstáculos que ameaçam sua capacidade de unir o país e, portanto, governar com sucesso. Os entraves começam com a disposição do homem que ele derrotou. O presidente tem saudado a perspectiva de derrota com obstinação e descrença, instigando seus partidários com uma grande abundância de informações falsas para acreditarem que a eleição foi roubada. As batalhas legais continuarão e a retórica de Trump visa fazer de Biden um presidente ilegítimo aos olhos da Nação Trump, antes mesmo de o presidente eleito tomar posse.

Os tuítes e comentários públicos de Trump nesta semana oferecem uma dica do que pode estar por vir. A menos que passe por uma mudança dramática de caráter, para a qual não há evidências, o 45º presidente provavelmente não seguirá o caminho de outros presidentes, que, de modo cordial, admitiram a derrota e depois cederam o palco ao sucessor.

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Trump anseia por ser o centro das atenções e por quase cinco anos teve as luzes mais brilhantes do mundo focadas nele. Biden pode tentar ignorar seu rival derrotado, tratando-o como ruído de fundo, mas Trump ainda será a voz de uma boa parte do eleitorado que o apoiou para a reeleição - um exército de 70 milhões de soldados.

A caminho do dia da eleição, Biden e muitos democratas acreditavam que as chances eram boas de que a vitória na disputa pela presidência ajudaria a impulsionar o partido para a maioria no Senado e que a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, iniciaria o próximo Congresso com maioria ampliada na Câmara baixa .

Em vez disso, os democratas perderam de forma chocante lugares na Câmara e suas esperanças de controle do Senado, após uma série de derrotas decepcionantes, agora dependem da perspectiva instável de ter de vencer duas eleições de segundo turno em janeiro na Geórgia. As expectativas de Biden de um Congresso controlado pelos democratas e disponível para acelerar suas prioridades legislativas agora parecem correr um risco significativo, o que exigiria uma recalibragem de sua estratégia de governo.

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Sem vitórias em ambas as eleições de segundo turno na Geórgia, Biden estará lidando com um Senado liderado pelo líder da maioria, o republicano Mitch McConnell. Biden tem frequentemente apontado seu longo relacionamento com McConnell como evidência de que ele poderia encontrar um terreno comum com os republicanos, pelo menos com frequência suficiente para realizar coisas importantes.

É verdade que, como vice-presidente de Barack Obama, Biden às vezes era enviado ao Capitólio para fechar acordos com McConnell, quando necessário, e às vezes tinha sucesso. Mas a realidade mais ampla é que McConnell foi um adversário implacável que certa vez disse que sua maior prioridade era impedir que Obama ganhasse um segundo mandato.

A postura que McConnell vai adotar em relação a Biden determinará se o presidente eleito pode começar a cumprir sua promessa de reparar um governo falido e mostrar uma saída para a política rancorosa. Mas mesmo que McConnell estenda a mão mais amigável para Biden do que estendeu para Obama, seu impacto será limitado. McConnell é o líder dos republicanos e de muitos outros em seu partido - colegas senadores e ativistas de base, exigirão resistência e oposição a praticamente todas as iniciativas que Biden apresentar.

Depois, há o Partido Democrata. Aqueles na esquerda e no centro pediram uma trégua durante a campanha em deferência à causa da derrota de Trump. Mas, mesmo antes do fim da eleição, aqueles na ala liberal já estavam alertando sobre os confrontos políticos que viriam sobre saúde, mudança climática e questões de justiça racial, para começar.

Os resultados desta semana na Câmara produziram uma reação contra a esquerda, enquanto moderados furiosos reclamaram em uma teleconferência de que a agenda da ala liberal permitiu que os republicanos pintassem os membros da Câmara em distritos disputados como soldados rasos em um partido de socialistas que defende, por exemplo, o fim da polícia. Biden e Pelosi podem ter que arbitrar uma batalha destrutiva em um momento em que o presidente eleito precisará de tanta unidade e harmonia dentro do partido quanto possível.

O que Biden traz para seu novo cargo é uma personalidade e um temperamento públicos que se adaptam aos tempos. Empatia e compaixão fazem parte de sua constituição, tanto quanto estão ausentes no atual presidente. Muitos que não compartilham das ideias ou ideologia de Biden, no entanto, o descreveram como um homem de fé e decência, dedicado à família e ao país.

Essas qualidades foram percebidas na campanha eleitoral tanto nos melhores momentos quanto quando sua candidatura parecia estar nas cordas. Ele desviou ou ignorou as críticas de que não tinha a capacidade de inspirar ou a energia para mobilizar. Se suas habilidades de campanha não fossem as de um Obama, ele seria, em vez disso, estável e, dessa forma, outro contraste com o atual ocupante da Casa Branca.

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Ele apostou seu futuro na ideia de que os democratas veriam nele os atributos necessários para derrotar Trump e que, como candidato do partido, um eleitorado mais amplo, ansioso por alívio do caos e divisões da presidência de Trump, buscaria o mesmo no próximo presidente durante as eleições gerais.

Essa aposta deu resultado esta semana, com Biden finalmente podendo entrar no Salão Oval em janeiro como presidente, 48 anos depois de se tornar senador. Seu legado agora incluirá o fim da presidência de Trump e ajudar a elevar a senadora Kamala Harris como a primeira mulher negra e à vice-presidência. Mas é só aí que começa. Tendo conquistado o prêmio que o consumiu por grande parte de sua vida adulta, o que poderia ser a parte mais desafiadora de sua longa carreira pública ainda está à sua frente./ TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

* Dan Balz é correspondente-chefe de política do Washington Post, e repórter na Casa Branca desde 1978

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