Análise: Michel Temer e a Chancelaria

Ainda que o ex-presidente possa se sentir inclinado a cooperar com o atual governo, será necessário acertos sérios, garantias políticas e o redesenho de um conjunto amplo de políticas públicas que o governo Bolsonaro não tem como aferir

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Por Hussein Kalout
Atualização:

Chegamos ao segundo ano do governo Bolsonaro e o saldo da amorfa “política externa” do país conseguiu ser muito pior do que a diplomacia do ano anterior. Em seu entorno geográfico, o Brasil se pôs à deriva. Nos foros multilaterais, a diplomacia brasileira encontra-se na contramão do mundo. A relação com a China está trincada. E o presidente dos EUA, Donald Trump, o grande projeto e aposta máxima da diplomacia brasileira, deixará o bolsonarismo órfão de “amigos”.

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Diante de cenário de destruição plena dos cânones da política externa brasileira, é que se ventila o nome do ex-presidente Michel Temer para assumir o Ministério das Relações Exteriores. A hipótese de saída de Ernesto Araújo do Itamaraty seria festejada com um baile de arromba – por diplomatas, militares, empresários; aliás por quase todo o Brasil – independente de quem entrasse. Uma mudança no Itamaraty seria boa para o País e, sobretudo, para uma instituição bicentenária que sempre defendeu com esmero e responsabilidade o interesse nacional brasileiro.

Um político experiente, prudente e habilidoso como o ex-presidente Temer, contudo, não se deixa seduzir por uma pasta ministerial – ainda que seja a charmosa cadeira das Relações Exteriores. O autoengano do Palácio do Planalto está em acreditar que o ex-mandatário brasileiro não suspeita de que o objetivo central não é o de lhe imbuir da missão de abrir os salões junto ao presidente-eleito dos EUA, Joe Biden, mas é o de atrair, precipuamente, o MDB para a base do governo via essa oferenda. 

O ex-presidente Michel Temer. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Da perspectiva política, a equação não fecha. A despeito do ex-presidente Temer ser figura de proa do MDB e a sua palavra possui latitude e peso, é difícil crer que o MDB integraria o governo de Bolsonaro com apenas um único ministério e com a pasta das relações exteriores como aceno. Os mais inocentes no jogo da política diriam que seria subestimar os objetivos do partido e a inteligência de suas lideranças.

Ainda que o ex-presidente possa se sentir inclinado a cooperar com o atual governo, será necessário acertos sérios, garantias políticas e o redesenho de um conjunto amplo de políticas públicas que o governo Bolsonaro não tem como aferir – para além da mera oferta do Itamaraty de bandeja e de forma não requerida pelo ex-presidente e por seu partido.

Nesse sentido, aspectos cruciais precedem o convite. Sem um compromisso lavrado em público por parte do presidente Bolsonaro de que todos os eixos da “política externa” serão modificados, é difícil acreditar que o ex-presidente Temer aceitaria embarcar nessa canoa. Isto significa que as mudanças precisam ser estruturais no discurso e no conteúdo. Estaria Bolsonaro disposto a abrir mão da diplomacia paramentada pelo desvario do terraplanismo, empenhada no combate quixotesco contra o chamado marxismo cultural e comprometida com a cruzada imaginária contra o globalismo?

Isso implicaria afastar o olavismo do epicentro decisório dos temas afeitos à política exterior. O que significa, em miúdos, o desmantelamento do tripé condutor da moribunda diplomacia bolsonarista. O deputado Bolsonaro terá de cuidar dos afazeres de um deputado e deixar de operar como o chanceler oficioso do governo de seu genitor. De quebra, o mandatário brasileiro precisa refletir se mantém ou se substitui o seu assessor internacional por profissional menos ideológico e mais experiente – com noção mínima de interesse nacional para além do trumpismo e do fundamentalismo político.

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Logo, existem inúmeros empecilhos para que a “possibilidade Temer” no Itamaraty se materialize. É importante compreender ainda que Joe Biden, por mais que tenha simpatia pela figura do ex-presidente Temer, não sacrificará os interesses estratégicos de seu país e não mudará a sua postura crítica em relação à Amazônia se a política ambiental do governo Bolsonaro seguir na mesma toada.

Mesmo com a hipótese de Temer no Itamaraty, os canais de diálogo com Europa ou com o empresariado seguirão obstruídos se o governo não recuar drasticamente de sua perniciosa política de destruição ambiental. Igualmente, o diálogo com Pequim não voltará ao seu eixo de equilíbrio se os injustificáveis ataques não cessarem contra o maior parceiro comercial do Brasil.

Ademais, pelo perfil do ex-presidente Temer, não se admitirá uma abordagem que não seja o respeitoso diálogo com a Argentina e a prudência no trato da complexa questão venezuelana. Sem a valorização das instituições multilaterais e o respeito aos direitos humanos – isso significa que a política do ministério da ministra Damares e o padrão de voto do Brasil na ONU, em Genebra, precisam se alterar radicalmente –, o ex-presidente Temer não terá o que fazer no Itamaraty.

A relação do governo Temer com os demais poderes constituídos da república em nada guarda relação com a política do atual governo. O trato dispensado à imprensa é diametralmente o oposto. O apreço às instituições democráticas é absolutamente díspar – e isso para dizer o mínimo. O legado de sua gestão é hoje reconhecido nos mais variados segmentos da sociedade.

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Como homem que prima pela temperança, o ex-presidente possui como responsabilidade pessoal e familiar de defender a sua biografia. Estar no governo Bolsonaro seria como ajudar a destruir o seu legado e a sua própria política externa – que foi um dos pontos de excelência de seu governo. Portanto, o esforço do Planalto precisa ser infinitamente superior do que apenas oferecer a cadeira de chefe da diplomacia brasileira ao ex-presidente.

O dueto presidente e chanceler é como a simbiose entre cavalo e cavaleiro no hipismo. O conjunto precisa estar harmonizado para ser vencedor. É preciso estar em perfeita sintonia. A julgar pelas características do presidente e do ex-presidente e pelas diferenças abissais de suas respectivas mentalidades e visões de mundo, essa harmonização será muito difícil de ser alcançada – e isso sem contar a exposição ao risco de sair escorraçado no final como ocorreu com vários ministros desse governo.

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).

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