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Análise: O Brasil sem comando

Não estão errados os governadores e o Congresso quando decidem atuar à margem do Poder Executivo federal na busca de soluções para o maior problema da história do Brasil contemporâneo

Por Hussein Kalout
Atualização:

O Brasil está sem comando e sem rumo. De maneira transitiva direta, o País se tornou uma verdadeira várzea. Cada Poder da República e cada unidade da federação busca a seu modo responder aos problemas causados pelo grave curso da pandemia, numa tentativa de preencher o vácuo de governança deixado pelo Presidente da República.

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O Palácio do Planalto se pôs à deriva pela simples incapacidade de dialogar, articular, propor políticas públicas minimamente críveis, permanecendo em uma constante estratégia de negação da realidade e da ciência, procurando esquivar-se das consequências humanitárias e econômicas derivadas da crise sanitária que assola o País. A conta chegou e o governo foi posto nas cordas.

Não estão errados os governadores e o Congresso Nacional quando decidem, individualmente ou em articulação, atuar à margem do Poder Executivo federal na busca de soluções para o maior problema da história do Brasil contemporâneo. A alternativa seria a inoperância e a passividade diante do desastre, a venda de ilusões e milagres ante o descalabro e as mortes que se acumulam.

Funcionária de hospital em São Paulo presta atendimento a paciente diagnosticado com covid-19 internado na UTI Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Vários governadores decidiram correr atrás de vacinas e insumos hospitalares por conta própria, ignorando sem cerimônia a existência do governo federal. Vários parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal já acionam os seus contatos no exterior para pedir ajuda.

O ofício endereçado pelo presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, à vice-presidente dos EUA – e cumulativamente presidente do Senado americano –, Kamala Harris, pedindo “socorro ao Brasil nas ações de combate à pandemia da covid-19”, revela como não se confia mais nas faculdades do presidente de governar as políticas públicas e nem da nossa diplomacia boa de retórica anti-globalista, mas incapaz de perseguir os interesses reais do país.

Para o amplo espectro da sociedade brasileira parece estar consolidada a percepção de que salvar vidas sempre foi um movimento paliativo para o governo. Isto é: a economia precede a vida. No fundo, o governo deixou escapar de forma até rudimentar que a preocupação com os impactos econômicos se deve muito mais à necessidade de salvar o projeto de poder do presidente Bolsonaro e, consequentemente, a sua reeleição do que, enfim, mitigar propriamente o sofrimento da população.

Falhou a estratégia do presidente de se eximir desde o início das implicações econômicas e humanitárias da pandemia. Ainda que siga contando com um núcleo de apoiadores leais que constitui um substrato eleitoral suscetível ao discurso extremista e aos métodos de radicalização ideológica, o fato é que a estratégia está fazendo água, o que se reflete na gradativa elevação dos níveis de reprovação ao governo Bolsonaro.

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O recurso ao emprego autoritário da lei de segurança nacional para intimidar a população parece ser um puro movimento de desespero de quem perdeu a mão sobre a narrativa e não consegue mais controlar a crítica da opinião pública com táticas diversionistas e com crises pré-fabricadas. Nesse sentido, a preocupação que parece comandar a sanha autoritária de determinados agentes públicos, entre outros fatores, é a de tentar impedir que a eficácia da crítica ao presidente acabe enfraquecendo a simpatia de parte dos apoiadores do bolsonarismo.

A marca “Bolsonaro Mito” vai sendo eclipsada pela propulsão do slogan “Bolsonaro Genocida”, que está ganhando tração e rápida aderência em alguns estamentos sociais. Os efeitos psicológicos da crítica, em associação ao crescente número de mortes pela covid-19, vão consolidando o sentimento anti-bolsonarista e desidratando a confiança no Presidente da República, cuja capacidade para o exercício do cargo passa a ser questionada por setores simpáticos ao bolsonarismo.

O crescimento do anti-bolsonarismo na sociedade brasileira vai se cristalizando e caminha para assumir contornos que podem ser maiores do que foi o anti-petismo na eleição de 2018. Aliás, com um único discurso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mudou a expectativa de poder do sistema político brasileiro.

Como efeito, partidos políticos e postulantes presidenciais refazem as suas contas e aguardam os desdobramentos da pandemia e da economia. Recentes gestos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-ministro da fazenda Delfim Neto, ao sugerirem o voto no ex-presidente Lula em um eventual confronto eleitoral com o atual incumbente são recados subliminares de realismo para quem quer construir uma terceira via.

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O Brasil sem rumo e nem prumo vai avistando o Presidente da República depredar o mais sacrossanto dos predicados que a Constituição lhe reserva: a autoridade! Diante da perspectiva de derretimento de sua popularidade e de fragmentação nas hostes bolsonaristas, resta saber como reagirá o Presidente quando todos esses fatores, combinados com a impaciência e a ira de um povo faminto e doente, tornar inevitável seu ocaso político.

HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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