Análise: Um Nobel da Paz que incomoda

Prêmio para o Programa Mundial da Alimentos, das Nações Unidas, caiu como um balde de água fria sobre os fervorosos anti-globalistas do governo

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Por Hussein Kalout
Atualização:

O governo brasileiro parece que estava torcendo contra a concessão do prêmio Nobel de Paz para o Cacique Raoni e deve ter ficado aliviado que o líder indígena não tenha recebido a distinção.

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Afinal, seria dar visibilidade a alguém que denuncia o abandono da população indígena à sua própria sorte, a destruição da floresta estimulada pela falta de uma política ambiental digna do nome e a hegemonia da visão conspiratória no seio do governo, que vê em qualquer manifestação de preocupação com as queimadas na região amazônica o fantasma da cobiça estrangeiros sobre nossos recursos.

Mas nem tudo pode ser perfeito. O anúncio de que o Nobel foi para o Programa Mundial de Alimentos, a agência da ONU encarregada de prevenir a fome e promover a segurança alimentar caiu como um balde de água fria sobre os fervorosos anti-globalistas do governo, que enxergam naquela organização um ensaio de governo mundial pilotado por globalistas desalmados sem compromisso com as nações.

De fato, o silêncio do chanceler Araújo em relação ao reconhecimento a uma importante agência da ONU, com a qual, aliás, o Brasil tem longa e prolífica cooperação, não deixa de ser ensurdecedor. Por que esse Nobel incomoda, afinal de contas?

Porque dá visibilidade e reconhecimento mundial não apenas aos esforços do Programa Mundial de Alimentos na luta contra a fome e a desnutrição – flagelos que poderiam muito bem ser erradicados já que se produz do mundo alimentos mais do que suficientes para saciar as necessidades da população do globo, mas, sobretudo, por realçar a ideia mesma de soluções multilaterais para problemas que afetam países e nações individuais.

Mulheres da tribo Dadinga, no Sudão, recebem alimentos do PMA Foto: Goran Tomasevic/Reuters

O prêmio escancara algo que anti-globalistas, extremistas e terraplanistas que se apoderaram do Itamaraty e da FUNAG não querem e não podem admitir, sob pena de ver ruir o castelo de cartas de que é feito seu arcabouço pseudo-intelectual: problemas como a segurança alimentar, a mudança do clima, o manejo sustentável de recursos hídricos, pesqueiros e marinhos, entre muitos outros, requerem cooperação internacional por meio das organizações multilaterais.

O ministro do exterior – utilizando de sua delicadeza diplomática – chegou a denunciar o termo multilateralismo como algo inapropriado, uma espécie de ideologia nociva que dilui a soberania nacional (num evento multilateral). Todavia, multilateralismo é uma palavra que descreve uma das formas como a diplomacia contemporânea se organiza para lidar com problemas e desafios que requerem cooperação internacional ou não serão efetivamente enfrentados e resolvidos. Na verdade, o multilateralismo, assim como o direito internacional, reflete o mais puro exercício da... soberania nacional!

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Os Estados é que tomam a decisão soberana de contrair obrigações políticas ou jurídicas no âmbito internacional quando consideram que essa é a forma de defender melhor seus interesses, seja na luta contra a fome, na busca da paz e da segurança, na assistência humanitária ou no combate e prevenção de doenças.

Isso significa que as organizações multilaterais são perfeitas, imunes ao jogo político mesquinho e à politicagem burocrática? Ou que estejam acima do bem e do mal? Claro que não. Como disse o ex-secretário-geral da ONU Dag Hammarksjöld, as Nações Unidas não foram criadas para nos levar ao paraíso, mas para livrar-nos do inferno.

As organizações multilaterais, aliás, são integradas pelos Estados membros, que são os responsáveis pelas decisões. A maior parte das falhas decorre não das decisões de uma elite globalista descolada dos Estados, mas ocorrem por obra e graça dos próprios Estados membros, cujos desacordos e diferenças políticas nem sempre garantem os instrumentos adequados para que as organizações multilaterais cumpram adequadamente suas funções.

O Nobel ao Programa Mundial de Alimentos demonstra mais uma vez como o Brasil, um país antes respeitado internacionalmente por seu perfil ativo na defesa do multilateralismo, caminha a passos largos para a irrelevância. Em nome da soberania nacional, denuncia-se o multilateralismo, enquanto se pratica a sabujice explícita ao governo disfuncional de Donald Trump. Esse é o paradoxo evidente de uma política externa sem bússola, cuja característica principal é a terceirização da definição de nosso interesse nacional.  

O prêmio apenas ajuda a evidenciar o contraste entre um mundo que necessita cada vez mais do multilateralismo e um Brasil que se auto-isola, descartando suas credenciais históricas de país comprometido com o direito internacional e as soluções multilaterais. Raoni não ganhou o prêmio, mas tem razões para comemorar.

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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