Antes rico que vermelho na China

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Por H.D.S. Greenway
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A visão dos arranha-céus em Pudong, onde, há apenas 20 anos, só existiam campos lamacentos, ou a vista de multidões de turistas chineses bebendo alegremente nas exóticas ruas de Lijiang, nas colinas de Yunnan, traz à lembrança um slogan que já foi absolutamente revolucionário e mudou a China: "Não importa a cor do gato, desde que ele apanhe ratos." A frase, atribuída a Deng Xiaoping, era revolucionária porque contradizia diretamente a tirada de Mao Tsé-tung, "antes vermelho que especialista". Mao, o velho demônio, havia lançado incontáveis campanhas ideológicas que colocaram a China de joelhos. O importante era ser vermelho, e não saber de tudo. O que Deng fez com sua analogia do gato foi recolher a ideologia e promover a praticidade, tomar a natureza humana como ela era em vez de tentar criar um homem socialista perfeito, culminando em outro de seus aforismos: "Ficar rico é maravilhoso." E foi precisamente isso que muitos chineses fizeram. Segundo reportagens na imprensa, a China hoje abriga 106 bilionários, perdendo apenas para os Estados Unidos. Não tinha nenhum em 2002. No recente congresso do Partido Comunista, a imprensa escrita e a televisão chinesas afirmaram repetidamente que a China tinha a terceira maior economia do mundo, depois dos Estados Unidos e do Japão. Há 20 anos, ela estava em 29º lugar. Antes de alcançar o poder supremo, há 30 anos, Deng havia sido expurgado duas vezes por pretensamente defender uma mudança de caminho - da revolução para o capitalismo. Hoje, seria preciso dizer que era exatamente isso que ele fazia: "construir o socialismo com características chinesas", como dizia Deng. Mas é difícil perceber onde se encaixa o socialismo nisso agora que a economia de mercado vigora. Foram-se as massas que tinham de curvar-se ante o "Pensamento de Mao" num Estado orwelliano. A renda não é distribuída igualitariamente. O brilho e glamour da nova Xangai contrasta fortemente com os arados de madeira puxados por bois no campo. Se socialismo significa alguma coisa, esta é o controle exercido pelo Partido Comunista chinês. Deng, que não era nenhum democrata, temia que a China pudesse desintegrar-se como acontecera com a União Soviética de Mikhail Gorbachev, apesar de reconhecer, antes mesmo de Gorbachev, que o comunismo era impraticável. Mas ele equiparava as manifestações pela democracia ao caos, e havia visto muito disso na Revolução Cultural. "Nosso povo passou por uma década de sofrimento", disse ele, e "não se pode permitir um novo caos." Deng pode ter dito que "o socialismo e uma economia de mercado não são incompatíveis", mas disse também que "socialismo não significa poder compartilhado". As crescentes expectativas políticas que acompanharam as reformas econômicas e sociais de Deng foram esmagadas na Praça da Paz Celestial há 18 anos. E todo desafio percebido ao poder estatal é suprimido com a mesma truculência pelos sucessores de Deng. Mas, a despeito disso tudo, os últimos 20 anos foram os melhores que a China viveu nos últimos dois séculos. O lançamento do foguete chinês à Lua pareceu cronometrado para coroar o congresso do Partido Comunista no mês passado, e os planos para os Jogos Olímpicos de 2008 no país lembram os preparativos de uma debutante para celebrar sua festa de apresentação à sociedade. Mesmo assim, os líderes chineses parecem tão ansiosos para manter o rótulo de socialismo colado em sua sociedade quanto os políticos americanos de evitar o rótulo socialista quando discutem planos sobre o sistema de saúde e coisas afins. Era inevitável, num país tão imenso, que os problemas da China fossem também desmedidos. Uma poluição extrema paira sobre as cidades e devasta o interior. As mudanças rápidas estão desestabilizando a sociedade, a falta de regulamentos prejudica suas exportações, e sua demanda de commodities para alimentar a economia aquecida está afetando os mercados mundiais. Um fenômeno interessante é o esforço da China para virtualmente adquirir a África. O interesse chinês na África remonta aos esforços de Chu En-lai nos anos 1950. Mas os investimentos recentes num continente que boa parte do restante do mundo tem descrito como sem esperança têm pouco a ver com ideologia e tudo a ver com negócios. A China não tem o menor interesse na política da África, como me explicou um acadêmico chinês. O que a China deseja são commodities da África - e Pequim espera forjar uma relação mutuamente benéfica com esse continente para obtê-las. Os chineses se surpreendem com o zelo do governo do presidente americano, George W. Bush, em promover a democracia, mesmo pela força - o que levou um amigo chinês a dizer que só restavam quatro países movidos a ideologia no mundo: Cuba, Coréia do Norte, talvez o Irã, e os EUA. O desejo por uma forma de governo mais representativa ainda pode bater no peito da China, mas, por enquanto, suas energias estão concentradas em apanhar ratos. TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK *H.D.S.Greenway é colunista do ?International Herald Tribune?

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