Antigos mitos e novas realidades

Apoio dos EUA a Bagdá deveria ocorrer somente após as disputas religiosas e tribais no Iraque serem superadas

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Por WALTER PINCUS
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Vamos examinar o Iraque de acordo com uma lente que o senador democrata J. William Fullbright, do Estado americano de Arkansas, chamou de "antigos mitos e novas realidades". Antigo mito: a ameaça representada pelo Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isil, na sigla em inglês) é resultado das políticas do presidente Barack Obama, que não deram continuidade ao sucesso trazido pelo aumento acentuado no número de soldados americanos no país árabe promovido por George W. Bush. Nova realidade: os problemas de Bagdá começaram décadas antes de Obama chegar à Casa Branca. Começaram muito antes de Bush iniciar sua cara e mal concebida invasão para trazer uma "democracia" ao estilo americano a um país que nem ele ou seus principais conselheiros compreendiam. Aquilo que está se desenrolando atualmente no Iraque - e na Síria - é a erupção de animosidades religiosas (sunitas versus xiitas) e tribais há muito enterradas conforme esses grupos disputam para obter uma autonomia pela qual lutam há tempos. "Sunitas e xiitas, cidades e tribos, xeques e líderes tribais, assírios e curdos, pan-arabistas e nacionalistas iraquianos - todos lutaram vigorosamente para conquistar espaço na estrutura emergente do Estado iraquiano." Este trecho compõe uma descrição histórica do Iraque feita em novembro de 1932, quando o território iraquiano se tornou um país soberano que foi admitido na Liga das Nações, de acordo com um estudo sobre o Iraque da Biblioteca do Congresso. "O conflito entre xiitas e sunitas, que tem sido um problema desde o início do domínio do califado Omíada, em 661, continuou frustrando as tentativas de lapidar o Iraque e torná-lo uma comunidade política", afirma o estudo. Os conflitos ocorreram durante a história do país. Então os estrangeiros se instalaram na região - os britânicos no Iraque e os franceses na Síria -, desenhando as fronteiras artificiais entre esses países. E trouxeram ao poder as minorias: os sunitas no Iraque e os alauitas, ramo do Islã próximo ao xiismo, na Síria. Os sunitas tinham sido favorecidos durante o Império Otomano, ganhando mais experiência administrativa e, com isso, estendendo seu domínio sobre o governo e o Exército. As ditaduras emergiram como única maneira de manter juntos grupos discordantes - e a última delas no Iraque foi a de Saddam Hussein. O que o governo Bush deveria esperar em 2003 quando seus representantes dissolveram o Exército iraquiano dominado pelos sunitas, dispensaram os burocratas sunitas e outros que pertenciam ao Partido Baath, de Saddam, observando enquanto o xiita Nuri al-Maliki assumia o lugar dele? Stephen J. Hadley, conselheiro de segurança nacional de Bush, visitou Bagdá e, em novembro de 2006, relatou que, sob o comando de Maliki, havia "uma iniciativa agressiva no sentido de consolidar o poder dos xiitas", mas não estava "tão claro se Maliki participava desse processo deliberadamente ou não". Revelou-se que a participação dele foi ativa e, nas palavras do ex-secretário de defesa Robert M. Gates, em janeiro, as "políticas contra os sunitas (de Maliki) explodiram no rosto dele - literalmente. Antigo mito: o Isil é ligado à Al-Qaeda, representa uma ameaça direta ao território americano e precisa ser derrotado. "Hoje, graças a Obama, a Al-Qaeda está voltando ao Iraque - retomando cidades de onde a tínhamos expulsado com o sangue dos soldados americanos (e) usando o Iraque como base a partir da qual são coordenadas as operações de sua jihad na Síria", escreveu na terça-feira Marc A. Thiessen, que foi um dos principais assessores de Bush, no Christian Science Monitor. Nova realidade: o Isil não é a Al-Qaeda. Formado originalmente como braço da Al-Qaeda no Iraque sob o comando de Abu Musab al-Zarqawi, o grupo logo se desentendeu com a Al-Qaeda original. Depois que Zarqawi foi morto pelas forças americanas, em junho de 2006, a organização dele quase ruiu quando os líderes tribais sunitas deram ouvidos aos esforços americanos de aproximação e depositaram esperança no governo de Maliki. Enquanto isso, Abu Bakr al-Baghdadi, ex-pregador sunita de Samarra, tinha sido detido em 2005 e mantido sob custódia dos americanos na prisão de Camp Bucca. Não se sabe se ele já era um jihadista implacável antes disso ou se suas posições foram radicalizadas durante a detenção. Ele foi libertado como parte de uma anistia geral em 2009 e assumiu o controle da Al-Qaeda do Iraque em 2010, quando o grupo já se chamava Estado Islâmico do Iraque. Os sangrentos ataques liderados por ele no Iraque em agosto de 2011, depois de fazer elogios a Osama bin Laden, e a promessa de mais ataques do tipo, levaram o Departamento de Estado americano a oferecer uma recompensa de US$ 10 milhões pela captura dele. Em 2012, Baghdadi começou a recrutar combatentes sunitas para a insurreição contra o governo da minoria alauita do presidente sírio, Bashar Assad, chegando a enviar comandantes ao país. Na Síria, seus combatentes enfrentaram o Jabhat al-Nusra, grupo sunita rebelde apoiado pelo novo líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri. Em fevereiro, Zawahiri emitiu um pronunciamento rejeitando os elos com o Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Zawahiri disse que a Al-Qaeda "não criou o grupo… não dialoga com o grupo… e não é responsável por seu comportamento". Baghdadi decidiu se concentrar no Iraque este ano e, como resultado, o Isil conquistou Faluja e Ramadi. Na semana passada, o grupo tomou Mossul e Tikrit. Levando em consideração essa nova realidade e, espera-se, compreendendo os antigos mitos, como os Estados Unidos reagem? O poderio militar americano, em especial uma campanha composta apenas por bombardeios, não será capaz de apagar a sangrenta história do Iraque, nem poderá redesenhar as fronteiras do Oriente Médio. Se Obama quiser apoiar um governo em Bagdá, isso deve ocorrer depois - e não antes - de seus líderes mostrarem sua capacidade de representar os vários grupos diferentes do país. O mantra de Obama deveria ser observar o que eles fazem, e não o que dizem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL WALTER PINCUS, DO THE WASHINGTON POST, É COLUNISTA

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