Aos 75 anos, ONU enfrenta desconfiança, ataques populistas e incertezas sobre o futuro

Sistema das Nações Unidas completa 75 anos em meio à pandemia de covid-19 e busca fortalecer agenda global baseada na cooperação internacional e desenvolvimento sustentável

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Por Paulo Beraldo
9 min de leitura

“A Organização das Nações Unidas não foi criada para levar a humanidade ao paraíso, e sim para salvá-la do inferno”. A frase do ex-secretário geral da ONU Dag Hammarskjöld, lembrada em uma parede do complexo da instituição em Nova York, é um dos últimos pontos do tour guiado na entidade.

A poucos passos de onde ocorre todos os anos a Assembleia-Geral com líderes de 193 países, a mensagem está ali para lembrar o que deveria guiar a atuação da Organização, criada por 50 Estados-membros há 75 anos. Ao longo das décadas, as Nações Unidas perseguiram o objetivo descrito por Hammarskjöld.

Mas nem sempre conseguiram - e as guerras na Síria, no Iêmen e o conflito Israel-Palestina são algumas das provas dos desafios da ONU em seu aniversário.

Salão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em Nova York Foto: Manuel Elias/Biblioteca das Nações Unidas

Para além dos conflitos, a pandemia fará a insegurança alimentar superar a marca de 800 milhões pessoas por ano, a pobreza elevará as migrações aumentando o número recorde de refugiados - pouco mais de 50 milhões - e a recessão é a maior desde a Grande Depressão. Enquanto isso, o planeta testemunha o surgimento do que analistas descrevem como uma nova Guerra Fria - agora entre Estados Unidos e China.

No início de 2020, o secretário-geral da ONU, o português António Guterres, enumerou “quatro cavaleiros do Apocalipse” que ameaçam o mundo: tensões geopolíticas com protestos em dezenas de países, ameaças do desenvolvimento tecnológico, mudanças climáticas irreversíveis e desconfiança na globalização e nas elites políticas.

Aos quatro somou-se um vírus mortal que não respeita fronteiras nem culturas, mas espraia-se em um mundo onde crescem discursos xenofóbicos e nacionalismos. “Estamos vivendo uma crise de confiança a nível internacional”, avalia Carlos Lopes, que atuou como braço direito do ex-secretário geral da ONU Kofi Annan, líder da entidade entre 1997 e 2006.

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Carlos Lopes (à esquerda), da Guiné Bissau, foi conselheiro do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan. Depois, representou a ONU no Brasil e foi chefe da Comissão Econômica para paraÁfrica Foto: Acervo Pessoal
'É um paradoxo: Nunca tivemos um conjunto de instrumentos tão universais como a Agenda 2030 e nunca estivemos, desde o fim da Guerra Fria, tão longe de poder construir consensos”.

Carlos Lopes

Agenda 2030 é o nome dado aos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pelos Estados-membros na Assembleia-Geral de 2015 para promover o desenvolvimento em áreas como economia, saúde, educação, mudanças climáticas, igualdade de gênero, alimentação e meio ambiente.

Para Lopes, que foi representante das Nações Unidas no Brasil, a crise de confiança começou com regulações de transações econômicas mundiais que falharam em entregar resultados prometidos. Iniciou na economia, atingiu o sistema financeiro, com a crise de 2008 e 2009, e agora chega à tecnologia. “Há um buraco entre ambição e realidade e ele faz com que essa crise se manifeste”.

Além da crise de credibilidade, ataques de lideranças nacionalistas como o presidente Donald Trump tentam minar a instituição - assim como cortes orçamentários e atrasos de pagamentos. “Cria-se uma desconfiança sobre quem está a trair o sistema”, explica Lopes. “Os EUA dizem que tudo que vem da China pode ser uma ameaça à segurança, e a China diz que a maior parte das tecnologias ocidentais não respeita as necessidades de controle da população chinesa”.

O secretário-geral das Nações Unidas, o português Antonio Guterres (à esq.) e o presidente da Assembleia-Geral, o turco Volkan Bozkir, em evento com distanciamento social Foto: EFE/EPA/Eskinder Debebe / UN Photo

Em 75 anos, contribuições concretas  

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Para além da crise atual, analistas avaliam que a ONU tem cumprido a missão atribuída pelos países que a fundaram em outubro de 1945, nos Estados Unidos, com a Carta de São Francisco. O objetivo era evitar outro desastre como a 2ª Guerra e o Holocausto e promover a cooperação, a paz e o desenvolvimento entre os países.

Muitas críticas tendem a ignorar o longo histórico de sucesso das Nações Unidas no que diz respeito à promoção do desenvolvimento, dos direitos humanos e da paz

Adriana Erthal Abdenur, pesquisadora especializada em governança global e diretora executiva da plataforma CIPÓ.

A ONU elaborou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que serviu de base para constituições e leis em diferentes países. Nos fóruns da ONU, ao menos 80 ex-colônias, onde vivem 750 milhões de pessoas, se tornaram independentes ao longo dos últimos 75 anos - a carta de fundação da entidade prevê a igualdade de soberania entre as nações e o princípio de autodeterminação dos povos.

"Os ataques contundentes que desprezam a ONU ou que dizem que ela deve cessar de existir não oferecem soluções para lidar com uma pandemia, com o impacto das mudanças climáticas ou com as incertezas trazidas pelas novas tecnologias", diz Abdenur.

Artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos corredores da sede da ONU em Nova York Foto: Paulo Beraldo/Estadão

'Se não existisse, teria de ser inventada' 

Por meio da ONU, países da periferia do sistema internacional buscam se articular para ter maior peso nas decisões. É o caso do Movimento dos Países Não Alinhados, lançado na década de 1960 por aqueles que não queriam optar por União Soviética ou Estados Unidos - foram 120 países. Ou por meio de coalizões mais atuais, como o Grupo dos 77, composto por nações em desenvolvimento que buscam promover seus interesses em fóruns multilaterais. O Brasil integra os dois grupos.

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Diplomata brasileiro que chefiou a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) entre 1995 e 2004, Rubens Ricupero diz que “se um fórum global como a ONU não existisse, precisaria ser inventado”. Ele cita como um dos motivos para o início da Primeira Guerra (1914 e 1918) a inexistência de um espaço com todos os países presentes - argumento presente no livro ‘Os Sonâmbulos’, do historiador Christopher Clark, escrito após análise das origens do primeiro conflito global.

Rubens Ricupero, então chefe da UNCTAD, com o então secretário-geral Kofi Annan no escritório das Nações Unidas em Genebra, na Suíça, em 1997 Foto: UN Photo/L Bianco

“Nunca houve tantas forças de paz da ONU como hoje. Se não houvesse a ONU, quem faria isso?”, questiona Ricupero. “Um país isolado teria um custo muito maior e muito menos legitimidade. Apesar dos pesares, as Nações Unidas são insubstituíveis”, diz. Mais de 100 mil integrantes das Forças de Paz atuam em 120 países mantendo a segurança de ao menos 125 milhões de pessoas.

Para Ricupero, a pandemia deveria deixar uma lição: o aperfeiçoamento da governança global na área da saúde com a criação de um sistema internacional capaz de detectar e impedir crises sanitárias como a do coronavírus.

“A Organização Mundial da Saúde não tem força, recursos ou mandato para identificar uma nova pandemia antes que ela se transforme em um incêndio na floresta”, comenta ele, que já representou o Brasil na instituição. “Mas cada organização internacional só tem o poder que seus membros queiram que ela tenha”.

‘Faltam dentes’?

Uma das críticas comuns à atuação das Nações Unidas é a de que a maior parte dos órgãos da entidade só fazem recomendações. Apenas o Conselho de Segurança - formado por Rússia, Estados Unidos, China, Reino Unido e França - tem poder para impor sanções econômicas e permissão para usar a força militar. Para isso, a decisão não pode ter veto de nenhum dos cinco membros permanentes. Há ainda outros 10 membros rotativos com mandato de dois anos.

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Reformar esse órgão já foi tema de centenas de discussões estimuladas por países como Alemanha, Japão, Índia e Brasil, motivados pela crença de que os cinco membros permanentes escolhidos nos primórdios da ONU não representam mais a atual ordem mundial. Ao longo dos anos, muitas decisões tiveram pouca agilidade devido à rivalidade entre seus integrantes. Apesar dos pedidos de outros países, há pouca disposição para mudar o status-quo.

José Graziano da Silva, engenheiro agrônomo que chefiou a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) por oito anos, diz que algumas agências deveriam ter mandatos mais específicos. “Essas instituições todas (agências especializadas) apenas recomendam ações que são adotadas pelos Estados-membros ou não, a depender da conveniência”, diz.

Edifício da ONU em Nova York com luzes que imitam uma geleira derretendo. Mudanças climáticas e desenvolvimento econômico sustentável estão entre as principais pautas da entidade Foto: Paulo Beraldo/Estadão

“Um sistema mais vinculante das discussões deveria existir no caso da saúde, da segurança alimentar e do meio ambiente”. E por que essas mudanças têm dificuldade de avançar? “A questão fundamental é como obrigar um país que é autônomo, independente,a se sujeitar a uma decisão de uma Assembleia-Geral do sistema. Essa questão não me parece resolvida no nível político e dificilmente poderia ser nas atuais circunstâncias”.

O financiamento também é usado pelos países-membros para pressionar politicamente as entidades do sistema ONU. Em 2017, o presidente americano Donald Trump decidiu abandonar a Unesco por acreditar que sua atuação era contrária a Israel. Em 2020, em plena pandemia, decidiu abandonar a OMS por acreditar que a entidade favorecia a China, epicentro do vírus. Os EUA são responsáveis por cerca de 22% do orçamento do sistema das Nações Unidas. 

Graziano também critica a burocracia internacional do sistema Nações Unidas, que consome parte considerável do orçamento das agências e dificulta reformas. “As pessoas defendem no fundo os seus cargos e seus interesses próprios. É muito difícil mudar isso com esses interesses arraigados se não for parte de uma iniciativa dos próprios países”.

Adriana Abdenur usa o exemplo da Agenda 2030 para ilustrar vantagens e desvantagens de a ONU não ‘ter dentes’, como costuma se dizer nos corredores da instituição. “Politicamente, é muito importante cada país poder escolher o caminho que deseja para alcançar suas metas - é o discurso da soberania nacional”, diz.

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Em 2015, Estados-membros da ONU se comprometeram com a Agenda 2030, que definiu os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável Foto: Paulo Beraldo/Estadão

“Mas, na ONU, o país assume um compromisso e será cobrado por isso pela comunidade internacional e pela sociedade civil, que participa muito. Existem caminhos para que os governos nacionais sejam responsabilizados por não alcançar determinadas metas”. Como uma mudança para aprimorar o trabalho das Nações Unidas, Abdenur defende mais participação de governos subnacionais - como Estados e municípios - em mais fóruns. 

Desde 1945, o número de países na ONU avançou quase quatro vezes e as agências se multiplicaram para áreas como segurança alimentar, migração, saúde, trabalho, desenvolvimento econômico, educação, meteorologia, infância, meio ambiente. A lista vai longe - apesar de ser desconhecida do grande público. 

"Muita gente tem algo a ver com a ONU sem saber - se pegar um avião, vai usar um corredor aéreo aprovado por padrões internacionais, se pega o celular, usa uma rede que segue corredores de ondas herzianas e o telefone teve a patente aprovada pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual", exemplifica Carlos Lopes. "Há praticamente uma presença da ONU em tudo que a gente faz sem se dar conta. O mundo não poderia funcionar sem essa regulação". 

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