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‘Aqui, posso brincar de ditador à vontade’

Plano do Kremlin para distribuir terras a dissidentes se transforma em opção de moradia para opositores

Por Andrew Higgins
Atualização:

NOVINKA, Rússia - O extrovertido crítico do atual presidente da Rússia e de todos os líderes do Kremlin que o antecederam, Sergei Lunin, é um descontente inveterado.

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Mas enquanto o miserável Lunin, de 60 anos, caminhava recentemente por um terreno coberto de neve virgem salpicada de bétulas a 5.600 quilômetros a leste de Moscou, ele se deleitou com a perspectiva de finalmente satisfazer seus anseios.

“Aqui, posso brincar de ditador à vontade”, disse Lunin, descrevendo seus planos para transformar o terreno, concedido a ele para seu livre uso pelo estado russo, em um santuário para se defender do… estado russo.

Sergey Lunin e sua esposa, Aliona Dobrovolskaya, no apartamento deles emBlagoveschensk. Foto: Davide Monteleone/The New York Times

Quando o presidente Vladimir Putin iniciou um programa para ceder terrenos em regiões remotas do Extremo Oriente Russo, quatro anos atrás, a ideia era atrair colonos jovens e determinados para uma área vasta e quase despovoada em uma espécie de versão eslávica da promessa da Lei da Propriedade Rural americana, de 1862, que prometia 65 hectares aos colonos.

Em vez disso, ao menos nesse terreno perto da fronteira com a China, o programa do Kremlin atraiu Lunin, que se declara anarquista - embora insista, “não sou um idiota que defende a violência” - e sempre viveu como uma mosca na sopa do governo. Antes de se inscrever como pioneiro para o desenvolvimento do terreno vazio, ele foi editor do já extinto jornal Dissidente; passou algum tempo em uma prisão soviética, acusado de “parasitismo”; e trabalhou como freelancer de consultoria política, especializado em criar casos.

O fato de alguém como Lunin se interessar pelo programa de assentamentos do Kremlin - e ser aceito nele - é indicação do quanto, nas regiões mais remotas da Rússia, as rígidas barreiras políticas que definem a política de Moscou e de outras cidades do ocidente do país, ao estilo “se não está comigo, está contra mim”, podem ser rapidamente dissolvida.

Como no Velho Oeste americano, o Extremo Oriente Russo sempre foi uma terra distinta. Isso é verdadeiro não somente por causa da distância em relação à capital, mas também pela autoimagem de paraíso de relativa liberdade, um lugar para exilados e dissidentes, idealistas e excêntricos de todo o tipo.

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O Extremo Oriente Russo, com seus amplos panoramas e sua incrível beleza natural, ainda é um mundo distante dos espaços apertados e mentalidades rígidas do ocidente. E, com frequência, a região tolera e até incentiva os espíritos inconformistas de pensamento livre.

Incentivar esses espíritos não era o objetivo de Putin quando o Kremlin embarcou no programa de assentamento do extremo oriente, oferecendo a cada participante 1 hectare de terras. O esforço buscava principalmente resgatar a região de décadas de declínio populacional e dificuldade econômica.

O Extremo Oriente responde por 41% do território total da Rússia, mas é habitado por apenas 6,2 milhões de pessoas, menos de 5% da população do país.

Até o momento, mais de 78 mil russos aceitaram a oferta de terras gratuitas. Mas poucos deles se enquadram na definição de colonos vindos de outras regiões: em vez disso, a maioria é de habitantes locais, entre eles autoridades do governo, interessados em construir uma casa de veraneio.

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Para os críticos do Kremlin, o programa é um equivocado fracasso, mas Lunin, que se disse “muito cético no início” e ainda frustrado com as regras que facilitam a retomada das terras por parte das autoridades, passou a defendê-lo, apesar de ter passado a vida desconfiando de tudo que fosse ligado às autoridades.

Lunin nunca votou em Putin e rejeita tudo que o presidente representa, mas também o considera o “extrato concentrado mais puro” das ideias e atitudes da grande maioria dos russos.

“Ele não é apenas representante do povo, e sim a expressão mais clara desse povo", disse ele. “Olhe ao redor - todas essas pessoas vão votar em Putin.”

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin Foto: Alexey DRUZHININ / SPUTNIK / AFP

Uma jogada recente do Kremlin para reescrever a lei eleitoral permitindo que Putin ignore os limites constitucionais para a reeleição, possivelmente permanecendo no poder até 2036, só serviu para confirmar o desprezo de Lunin pelo que ele descreve como “repulsiva realidade da Rússia".

Mas Lunin não acredita na oposição russa sediada em Moscou, que ele descreve como “nada além de outra face do mesmo sistema".

Foi essa perspectiva sombria que levou ele a pensar em fugir para longe com a mulher (está no terceiro casamento) para um terreno virgem cercado de pântanos, que vive congelado no inverno e repleto de insetos no verão. Não há vizinhos em um raio de quilômetros, a não ser um convento da Igreja Ortodoxa Russa.

Mas sua propriedade de 3 hectares, que inclui terrenos recebidos pela mulher, Alyona Lunin, e pela sogra, fica perto de uma estrada e pode ter acesso à eletricidade, diferentemente da maioria dos terrenos em oferta.

“Aqui será meu pequeno país, do qual eu serei o Putin", explicou ele durante visita recente às terras na companhia da mulher.

Ele logo acrescentou que a mulher nada teria a temer dos caprichos despóticos dele. “Seremos iguais, ditando juntos nosso destino", disse ele. “Ninguém vai sofrer por causa do meu governo.”

Sua prontidão em participar da distribuição de terras do Kremlin surpreendeu alguns críticos do governo que pensam como ele. Ao participar de programa da rádio Ekho Moskvy, emissora popular entre a intelligentsia liberal da Rússia, ele se viu diante de repetidas perguntas a respeito de como um conhecido irredutível adversário das autoridades como ele se permitiu participar do projeto de assentamento.

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“Não estou defendendo o programa de Putin", disse ele. “Estou usando-o. É para mim mesmo.”

Mas, além de acessar a internet para se candidatar como colono do terreno e preencher formulários confirmando sua prontidão em desenvolver as terras, Lunin fez muito pouco até o momento. Ele martelou estacas de madeira envoltas em etiquetas de plástico vermelho no solo congelado para marcar as fronteiras do seu território, mas não fez nada de substancial para desenvolvê-lo, como previsto nas regras do programa.

Ele tinha planos de começar em meados do ano passado, mas, dispondo apenas de uma barraca para se proteger de uma tempestade violenta, ele adoeceu e voltou ao apartamento alugado em Blagoveshchensk, a cidade mais próxima. Disse que vai tentar novamente este ano e tem planos grandiosos para, um dia, cultivar o próprio alimento, vendendo frutas e legumes, e construindo um sobrado de madeira perto de um lago nos limites da propriedade.

Mas, para levar isso a cabo, ele precisa de dinheiro.

Com um salário mensal de 7 mil rublos, cerca de US$ 106, recebido pelo trabalho de técnico em Blagoveshchensk, Lunin se sustenta graças à ajuda da mulher, que tem salário melhor oferecido por um instituto médico. Mas, mesmo com seus salários somados, ainda lhes falta muito dinheiro para comprar os equipamentos e materiais dos quais vão precisar para desenvolver o terreno.

A não ser que ele tome uma atitude logo, as autoridades poderão retomar sua propriedade. Para demonstrar que está progredindo lentamente, Lunin planeja construir uma pequena cabana quando o gelo derreter, vivendo nela para manter longe as autoridades até que ele consiga poupar o bastante para iniciar a construção de algo mais permanente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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