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17 mil armas antitanque em seis dias: como a Otan armou a Ucrânia contra a Rússia

Os Estados Unidos chegaram à beira do conflito direto com a Rússia, numa operação que remete ao Bloqueio de Berlim, de 1948 e 1949, só que muito mais complexa

Por David E. Sanger , Eric Schmitt , Helene Cooper , Julian E. Barnes e Kenneth P. Vogel
Atualização:

Sobre a pista nevada da Base Aérea Amari, no norte da Estônia, na manhã do domingo, caixas repletas de fuzis, munições e outros tipos de armamento eram carregadas num dos maiores aviões cargueiros do mundo, um Antonov AN-124, da Força Aérea da Ucrânia - uma aeronave da Guerra Fria, construída e vendida ao país quando seu território ainda compunha a União Soviética.

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Agora, o avião está sendo usado para combater a invasão russa à Ucrânia, como parte de uma vasta operação de ponte aérea que autoridades americanas e europeias descrevem como uma corrida desesperada contra o tempo, para transportar toneladas de armas para as forças ucranianas enquanto as rotas de fornecimento ainda permanecem abertas. Cenas como esta remetem ao Bloqueio de Berlim - que ocasionou a famosa corrida dos aliados ocidentais para manter Berlim Ocidental abastecida durante o cerco soviético, entre 1948 e 1949, enquanto a URSS tentava sufocar a região. E estão ocorrendo por toda a Europa.

Em menos de uma semana, EUA e Otan transportaram em gigantescos aviões cargueiros mais de 17 mil armamentos antitanque, incluindo mísseis Javelin, para a Polônia e a Romênia, para que os equipamentos sejam então transportados na ponte aérea para Kiev, a capital ucraniana, e outras grandes cidades ucranianas. Até aqui, as forças russas estiveram tão ocupadas em outras regiões do país que não miraram linhas de fornecimento de armas, mas poucos acreditam que isso possa durar.

Equipamentos e munições fornecidos pelos Estados Unidos, incluindo quase 300 mísseis antitanque Javelin, chegam ao aeroporto de Boryspil, nos arredores de Kiev. Foto: Brendan Hoffman/The New York Times (25/01/2022)

Essas contribuições, porém, são apenas as mais evidentes. Escondidas em bases espalhadas pelo Leste Europeu, forças do Comando Cibernético dos EUA, conhecidas como "equipes de cibermissão" foram acionadas para responder a ataques digitais da Rússia e interferir em suas comunicações - mas medir seu grau de sucesso é difícil, afirmam autoridades.

Em Washington e na Alemanha, autoridades de inteligência se apressam para combinar imagens de satélite com interceptações eletrônicas de comunicações entre unidades militares da Rússia, apagar as pistas sobre a maneira como as informações foram obtidas e transmiti-las para unidades militares ucranianas em até duas horas. Enquanto tenta se manter livre das forças russas em Kiev, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, desloca-se com um equipamento criptografado de comunicação, fornecido pelos americanos, capaz de colocá-lo em contato seguro e direto com o presidente Joe Biden.

Zelenski usou o dispositivo na noite do sábado, numa chamada de 35 minutos com seu homólogo americano que teve como assunto o que mais os EUA são capazes de fazer em seu esforço para manter viva a Ucrânia sem entrar em combate direto contra as forças russas, por terra, ar ou no ciberespaço.

Zelenski agradeceu a ajuda prestada até agora, mas repetiu a crítica que fez em público - de que a ajuda é insuficiente em face ao tamanho do desafio adiante. Ele pediu uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, a suspensão de todas as exportações de energia da Rússia e uma nova frota de caças.

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Trata-se de um equilíbrio delicado. No sábado, enquanto Biden estava em Wilmington, Delaware, seu Conselho de Segurança Nacional passou grande parte do dia tentando encontrar uma maneira para a Polônia transferir para a Ucrânia sua frota - bem usada - de caças MIG-29 de fabricação soviética que os pilotos ucranianos sabem pilotar. Mas o acordo está subordinado à condição de que a Polônia receba em troca caças F-16, de fabricação americana, com capacidade muito maior - uma operação complicada ainda mais pelo fato desses caças terem sido prometidos a Taiwan, onde os EUA possuem interesses estratégicos maiores.

Líderes poloneses afirmaram que não há acordo e se mostraram claramente preocupados a respeito da maneira como proveriam esses caças à Ucrânia e se, ao fazê-lo, poderiam tornar seu país um novo alvo para os russos. Os EUA afirmam estar abertos para a ideia da substituição das aeronaves.

"Não posso falar em cronograma, mas posso lhes dizer que estamos considerando isso muito, muito ativamente", afirmou no domingo o secretário de Estado americano, Antony Blinken, durante o giro que o levou à Moldávia, outro país da região que não integra a Otan e que, temem autoridades americanas, poderia ser o próximo alvo do presidente russo, Vladimir Putin, e sua lista de nações a serem trazidas de volta para a esfera de influência de Moscou.

E em Washington, grupos de lobby e firmas de advocacia que já cobraram bastante para oferecer seus serviços ao governo ucraniano agora trabalham de graça, contribuindo para o apelo do sitiado governo de Zelenski por mais sanções contra a Rússia.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, ao lado da presidente da Moldávia, Maia Sandu, no domingo, 6. Foto: EFE/EPA/DUMITRU DORU

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Os ucranianos também estão pedindo mais dinheiro para comprar armas, apesar de rejeitarem a ideia de que Washington está manipulando a imagem de Zelenski para fazê-lo parecer um Churchill de camiseta, convocando seu país à guerra. A Covington & Burling, uma grande firma de advocacia, abriu uma ação pro bono (sem cobrar pelo serviço) em nome da Ucrânia na Corte Internacional de Justiça.

Este esforço é, em muitos aspectos, mais complexo do que a operação para furar o Bloqueio de Berlim três quartos de século atrás. Berlim Ocidental era um território pequeno, com acesso direto pelo ar. Já a Ucrânia é um país grande, de 44 milhões de habitantes, de onde o presidente Biden retirou todas as forças americanas num esforço para evitar se tornar um "combatente concomitante" na guerra, termo legal que determina até onde os EUA podem chegar em sua ajuda à Ucrânia sem serem considerados em conflito direto contra uma Rússia com armas nucleares.

Mas à medida que os carregamentos de armas fluem e os esforços para interferir nas comunicações e redes computacionais russas se intensificam, algumas autoridades de segurança nacional dos EUA afirmam pressentir que esse conflito é cada vez mais provável. As definições legais nos EUA sobre o que constitui entrar em guerra não são iguais às definições de Putin, alertou uma autoridade de segurança nacional no fim de semana, falando sob condição de anonimato por causa da sensibilidade dos esforços americanos públicos e secretos em ajudar a Ucrânia.

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Putin alertou no sábado que qualquer país que tentar impor uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia estará "participando do conflito armado". No sábado, o Ministério de Defesa russo emitiu um comunicado aconselhando países da Otan como a Romênia a não permitir que suas bases sejam usadas como abrigo pelos aviões da Força Aérea da Ucrânia que ainda restam. Se isso ocorrer, afirmou a pasta, qualquer "acionamento posterior (das aeronaves ucranianas) contra as Forças Armadas russas poderá ser considerado envolvimento desses Estados no conflito armado"..

Quase 20 anos atrás, enquanto forças americanas começavam a entrar no Iraque, o general David Petraeus fazia seu famoso questionamento: "Diga-me como isso acaba". No caso da Ucrânia, afirmou uma graduada autoridade americana, a questão que ressoa na Casa Branca é mais: "Diga-me como não sermos sugados para um conflito entre superpotências".

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O fluxo de armas vira uma torrente

Para entender a natureza extremamente veloz do envio de armas em andamento agora, considere isso: Um pacote de envio de armas para a Ucrânia anunciado pelos EUA em agosto tardou até novembro para se concretizar totalmente, afirmou o Pentágono.

Mas quando o presidente aprovou US$ 350 milhões em ajuda militar em 26 de fevereiro - um pacote quase seis vezes maior que o anterior - 70% da ajuda foi entregue em cinco dias. A velocidade foi considerada essencial, afirmaram autoridades, porque o equipamento - incluindo armamento antitanque - atravessou o oeste da Ucrânia antes de forças russas terrestres e aéreas começarem a atacar os carregamentos. Conforme a Rússia tomar mais território no país, a expectativa é que a distribuição de armas para as tropas ucranianas se torne cada vez mais difícil.

Passadas 48 horas da aprovação de Biden para a o envio de armas de arsenais americanos, em 26 de fevereiro, os primeiros carregamentos, em grande parte vindos da Alemanha, começaram a chegar a aeroportos próximos à fronteira ucraniana, afirmaram autoridades.

Os militares foram capazes de acionar esses envios rapidamente acessando arsenais posicionados previamente e prontos para ser carregados em aviões de transporte Air Force C-17 e outras aeronaves de carga - transportando o equipamentos para cerca de meia dúzia de bases avançadas em países vizinhos da Ucrânia, principalmente Polônia e Romênia. O esforço de reabastecimento, porém, enfrenta duros desafios logísticos e operacionais.

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"A janela de fazer coisas fáceis para ajudar os ucranianos fechou", afirmou o major-general Michael Repass, ex-comandante do Comando de Operações Especiais dos EUA na Europa.

Autoridades americanas afirmam que líderes ucranianos lhes disseram que armamentos dos EUA e outros países aliados estão fazendo a diferença no campo de batalha. Soldados ucranianos armados com mísseis antitanque Javelin, que são portáteis e disparados a partir de lançadores apoiados nos ombros dos soldados, realizaram vários ataques na semana passada contra o extenso comboio, de dezenas de quilômetros, de veículos blindados e caminhões de suprimentos russos, o que ajudou a impedir o avanço terrestre da Rússia na direção de Kiev, afirmaram autoridades do Pentágono. Alguns veículos estão sendo abandonados, afirmaram autoridades, porque soldados russos temem permanecer no comboio quando caminhões-tanque estão sendo alvejados pelos ucranianos, detonando enormes bolas de fogo.

O comboio também foi atacado várias vezes em diferentes pontos da coluna por outro armamento fornecido por um país-membro da Otan. Drones Bayraktar TB2, fabricados pela Turquia e usados em combate pela primeira vez em outubro, contra os separatistas apoiados pela Rússia no leste ucraniano, caçam agora tanques e outros veículos russos, afirmaram autoridades americanas.

Civis ucranianas recebem treinamento militar em Kiev Foto: Lynsey Addario/NYT

"Todos nós ficamos tremendamente impressionados com o grau de eficácia com que as Forças Armadas ucranianas têm usado o equipamento que lhes temos fornecido", afirmou Laura Cooper, a mais graduada autoridade do Pentágono para política sobre a Rússia. "Observadores do Kremlin também têm se surpreendido com isso e pela maneira que os ucranianos ralentaram o avanço russo e desempenharam extrema habilidade no campo de batalha."

Até os elementos estiveram do lado do Exército ucraniano nos primeiros dias da guerra. O mau tempo no norte da Ucrânia impediu ataques de aviões e helicópteros russos, afirmou uma alta autoridade do Pentágono. Muitos veículos russos desviaram da estrada principal para evitar o congestionado comboio e ficaram atolados na lama, o que os deixou muito mais suscetíveis a ataques, afirmaram autoridades.

Mas a inteligência americana também tem seus limites. As regras seguidas por Biden o impedem de sobrevoar a Ucrânia com aeronaves de vigilância, então elas têm de espiar através das fronteiras, da mesma maneira que grande parte da vigilância à Coreia do Norte é realizada. Há uma dependência em relação a novos e pequenos satélites - que fazem imagens similares às que empresas comerciais, como Maxar e Planet Labs, têm fornecido.

Uma imagem de satélite mostra forças terrestres russas a nordeste de Ivankiv indo na direção de Kiev, Ucrânia. Foto: Maxar Technologies/Handout via REUTERS/File Photo (27/02/2022)

A guerra no ciberespaço mal começou

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Um dos fatores singulares deste conflito até aqui é que ele emprega táticas de guerra antigas e modernas. As trincheiras cavadas pelos soldados ucranianos no sul e no leste lembram cenas de 1914. Os tanques russos atravessando cidades evocam Budapeste em 1956. Mas a batalha moderna que a maioria dos estrategistas achou que marcaria os primeiros dias da guerra - travada em redes computacionais e nos sistemas de fornecimento de energia e de comunicações que elas controlam - mal começou.

Autoridades americanas afirmam que isso ocorre em parte por causa do amplo trabalho realizado para fortificar as redes ucranianas após os ataques da Rússia contra o sistema de eletricidade ucraniano em 2015 e 2016. Mas especialistas afirmam que isso não explica a situação absolutamente. Talvez os russos não tenham tentado com tanta força no início ou estejam mantendo essa carta na manga. Talvez uma contraofensiva liderada pelos americanos - parte do que o general Paul Nakasone, chefe do Comando Cibernético e da Agência de Segurança Nacional dos EUA, qualifica como uma doutrina de "engajamento contínuo" nas redes globais - explique pelo menos parte dessa ausência.

Autoridades do governo estão, compreensivelmente, de boca fechada, afirmando apenas que as operações cibernéticas em andamento, cuja base foi transferida de um centro de operações em Kiev para fora do país, são um dos elementos mais secretos do conflito. Mas está claro que as equipes de cibermissões miraram em alguns alvos familiares, incluindo as atividades do GRU, o departamento central de inteligência da Rússia, para tentar neutralizar sua atividade. A Microsoft ajuda fazendo correções em poucas horas para aniquilar malwares que detecta em sistemas não secretos.

Tudo isso é um campo novo quando se trata da questão de os EUA serem ou não "combatentes concomitantes". Segundo a interpretação americana sobre conflito cibernético, os EUA podem interromper temporariamente a capacidade da Rússia sem realizar um ato de guerra; já uma incapacitação permanente é algo mais problemático. Segundo especialistas, porém, quando um sistema russo cai, as unidades russas não sabem se a queda é temporária ou permanente - e nem mesmo se os EUA são os responsáveis.

Similarmente, compartilhar inteligência é perigoso. Autoridades americanas estão convencidas de que o Exército da Ucrânia e as agências de inteligência do país estão povoados de espiões russos e tomam cuidado para não distribuir dados de inteligência que revelem suas fontes. Os americanos afirmam que não estão passando adiante informações específicas de inteligência que indicariam às forças ucranianas como perseguir alvos específicos. A preocupação é que isso possa dar à Rússia desculpa para afirmar que está combatendo os EUA ou a Otan, não a Ucrânia.

Lobistas também lutam

A Ucrânia tem recebido serviços de lobby, relações públicas e assistência jurídica grátis - o que tem rendido frutos. Zelenski participou de uma chamada de Zoom com membros do Congresso no sábado, pressionando por sanções mais duras contra a Rússia e pedindo mais armas e outros tipos de apoio.

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Uma equipe criada especificamente para isso inclui Andrew Mac, advogado americano que tem se voluntariado como lobista e conselheiro não oficial de Zelenski desde o fim de 2019, e Daniel Vajdich, lobista que já foi pago pela indústria de energia da Ucrânia e por uma organização não governamental e que agora trabalha de graça. Mas lobistas americanos se tornaram um tópico sensível na Ucrânia após Paul Manafort, ex-chefe de campanha do ex-presidente Donald Trump, trabalhar para o presidente ucraniano pró-Rússia que foi deposto em 2014 - e depois de Trump tentar vincular a ajuda militar a Kiev à disposição do governo ucraniano em ajudar a encontrar podres do então candidato Biden e seu filho Hunter.

Vajdich disse esperar que seus clientes redirecionem qualquer dinheiro que teriam destinado à sua firma para a defesa militar do país e ajuda humanitária aos ucranianos forçados a deixar suas casas em razão do conflito, comparando a situação com o início da agressão militar nazista.

"Sabendo o que sabemos hoje, se vivêssemos e trabalhássemos entre 1937 e 1939, nós teríamos pedido aos checoslovacos pagamento em troca de lobby contra Neville Chamberlain e suas políticas?", perguntou ele, referindo-se ao ex-primeiro-ministro britânico que cedeu parte da Checoslováquia à Alemanha nazista no Acordo de Munique, em 1938.

"Não", afirmou ele, "certamente não". / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO