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Artigo: Alemanha já está fraturada

Aposentadoria de Angela Merkel marca o aprofundamento de uma crise do sistema político alemão que ameaça não apenas o futuro do país, mas também da União Europeia

Por Oliver Nachtwey
Atualização:

Após 18 anos, Angela Merkel deixa o cargo de presidente da União Democrata-Cristã (CDU), principal partido governista da Alemanha desde 2005. Sua sucessora – para muitos, a líder de facto da Europa – herdará um partido rebelde e um país fragmentado. A estabilidade (e até mesmo a monotonia) associada à política alemã sob Merkel parece estar chegando ao fim. Sua aposentadoria marca o aprofundamento de uma crise do sistema político alemão que ameaça não apenas o futuro do país, mas também da União Europeia.

Segundo organizadores, 150 mil pessoas participaram de ato contra a extrema direita na Alemanha. Foto: John MACDOUGALL/AFP

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Explicações para essa mudança radical geralmente começam e terminam com Merkel. Sua maneira de lidar com a chamada crise de refugiados e seu estilo pessimista alienaram grande parte do eleitorado. O enfraquecimento gradual dos partidos de centro alimentou, por sua vez, a polarização e a fragmentação do eleitorado.

Mas Merkel, apesar de todo seu poder e influência, é apenas uma política. A nova crise da Alemanha é muito mais profunda. Origina-se em um sistema econômico que resultou em salários estagnados e insegurança no emprego. A erosão do acordo da Alemanha no pós-guerra – um forte Estado de bem-estar social, trabalho de tempo integral, a oportunidade de ascender no mundo – criou uma população aberta a mensagens e movimentos anteriormente banidos para a periferia.

Tal como acontece com a política, na superfície, a Alemanha parece ser uma história de sucesso econômico. Seu PIB cresceu confiavelmente por quase uma década. O desemprego está em seu nível mais baixo desde a reunificação, em 1989. Ao acumular superávits comerciais, a Alemanha desfrutou de várias vantagens: um setor manufatureiro avançado, a capacidade de obter produtos e serviços primários de outros membros da UE e estar na zona do euro, o que efetivamente dá ao país uma moeda desvalorizada, tornando suas exportações mais atraentes.

No entanto, o sistema tem um custo. Para manter sua vantagem competitiva no mercado global, as empresas mantiveram os salários baixos. Embora os salários permanecessem estáveis para os trabalhadores qualificados do setor manufatureiro voltado à exportação, ou até aumentassem, os trabalhadores menos qualificados e com baixos salários sofreram. Isso foi possível pela descentralização da negociação coletiva, nos anos 90, o que enfraqueceu enormemente o poder dos sindicatos.

A chanceler alemã Angela Merkel Foto: Kay Nietfeld/dpa via AP

A outra razão, mais alarmante e subjacente à crise política do país – conectada, mas distinta da economia – é a erosão do modelo social alemão nas últimas décadas. Embora nunca tenha sido tão socialmente inclusiva quanto os países escandinavos, a Alemanha do pós-guerra tinha um estado de bem-estar abrangente e sindicatos robustos.

Na Alemanha Ocidental, onde um trabalho seguro era a norma, o emprego em tempo integral servia de base para a integração social. A metáfora clássica que descreve esse arranjo foi cunhada pelo sociólogo Ulrich Beck, na década de 80: o “efeito elevador”. Isso significava que, embora a desigualdade ainda existisse, todos estavam subindo no mesmo “elevador” social, significando que a lacuna entre ricos e pobres não aumentaria.

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Desigualdade. Trinta anos depois, esta sociedade desapareceu. A renda média real diminuiu por quase 20 anos, a partir de 1993. A Alemanha não só cresceu mais desigual, mas o padrão de vida dos estratos mais baixos estagnou ou até caiu. Os 40% mais pobres dos domicílios enfrentaram perdas anuais de renda líquida durante cerca de 25 anos, ao mesmo tempo em que os tipos de empregos que prometiam estabilidade no longo prazo encolhiam.

O número de empregos precários, como posições temporárias, explodiu. No auge da prosperidade do pós-guerra, quase 90% dos empregos ofereciam trabalho permanente com proteções. Em 2014, esse número caiu para 68,3%. Em outras palavras, quase um terço de todos os trabalhadores têm empregos inseguros ou de curto prazo. Além disso, um setor de baixos salários emergiu, empregando milhões de trabalhadores que mal podem arcar com as necessidades básicas e, frequentemente, precisam de dois empregos.

A classe média alemã está encolhendo e não funciona mais como um bloco coeso. Embora a classe média alta ainda desfrute de um elevado nível de segurança, os que estão logo abaixo enfrentam um risco muito real de mobilidade em queda. 

Em vez de um único elevador, a Alemanha hoje se parece com um hall de escadas rolantes em uma loja de departamentos: uma escada rolante já levou alguns clientes ricos para o andar superior, enquanto que, para aqueles abaixo deles, a direção começa a se inverter. A experiência diária de muitos é enfrentar uma escada rolante descendente. Mesmo quando trabalham duro e cumprem as regras, em geral, pouco progridem.

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Esses temores de declínio social também aceleram a xenofobia. Não há dúvida de que a maioria dos alemães acolheu os novos imigrantes, pouco mais de 2 milhões, que chegaram em 2015. Mas setores significativos da classe média baixa e da classe trabalhadora desaprovaram. 

Quando a ascensão não parece mais possível e o protesto social coletivo é quase inexistente ou ineficaz, as pessoas tendem a ficar ressentidas. Isso levou a uma insatisfação acumulada com os antigos partidos principais, os democratas-cristãos e os social-democratas. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

É AUTOR DE ‘GERMANY'S HIDDEN CRISIS: SOCIAL DECLINE IN THE HEART OF EUROPE’

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