Artigo: Carta aos amigos europeus

Posso muito bem entender por que tantos europeus querem apenas que tudo acabe e escoltar o Reino Unido para fora da casa. Até agora, tivemos 900 dias de um governo britânico que não foi capaz de articular uma posição de negociação

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Por Timothy Garton Ash
Atualização:

Posso muito bem entender por que tantos europeus querem apenas que tudo acabe e escoltar o Reino Unido para fora da casa da União Europeia. Até agora, tivemos 900 dias de um governo britânico que não foi capaz de articular uma posição de negociação, fez exigências irrealistas ou, como esta semana, foi incapaz de obter a aprovação parlamentar do acordo que negociou. Agora, os conservadores pró-Brexit pretendem derrubar Theresa May.

Theresa May, parlamentar do Partido Conservador e primeira-ministra do Reino Unido, apresentou para votação um acordo de 600 páginas do Brexit, que deve ser feito até 29 de março de 2019 Foto: REUTERS/Dylan Martinez

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À medida que o relógio avança para o “Dia B”, 29 de março, trazendo o perigo de um caótico Brexit “sem acordo”, posso ver porque, no Conselho Europeu desta semana, em Bruxelas, líderes como a chanceler Angela Merkel podem querer ajudar o governo britânico a apenas “conseguir ultrapassar a linha”. Só então a UE poderia voltar a enfrentar outros importantes desafios, incluindo populismo e os “coletes amarelos”, os problemas da zona do euro, imigração, Vladimir Putin e Donald Trump.

Mas isso constituiria o clássico erro político de privilegiar o curto prazo sobre o longo prazo. Sim, no curto prazo, ajudar o governo britânico na questão do Brexit traria alguma certeza, permitindo que a UE voltasse a outros negócios. Mas, no longo prazo, o Brexit criaria uma grave úlcera britânica, ferindo e enfraquecendo o corpo da UE.

A ulceração começaria logo após o “Dia B”. O Reino Unido teria então de negociar sua relação futura com o bloco com base em uma vaga e não vinculante declaração política – e a partir de uma posição negociadora excepcionalmente fraca. Essas negociações levariam anos e seriam muito difíceis. As falsas promessas dos defensores do Brexit logo seriam expostas. Para evitar assumir a culpa, os “brexistas” e a imprensa eurocética britânica culpariam os “europeus” pelos infortúnios do país, especialmente os franceses – algo que os ingleses vêm fazendo há 700 anos.

Mesmo que avançássemos para além desse tóxico jogo de culpa, é uma ilusão perigosa acreditar que o Reino Unido continuaria feliz cooperando construtivamente com o restante da Europa em política externa, defesa, contra o terrorismo, na partilha de inteligência e todas as outras áreas em que os britânicos contribuem substancialmente, ao mesmo tempo que se veem infelizes em relação ao restante do relacionamento. 

Não é assim que a política funciona, especialmente em uma era de populismo. Também é uma ilusão pensar que em poucos anos os britânicos regressariam, com os rabos entre as pernas, implorando para voltar. Essa é uma leitura errada do caráter britânico. Em suma, haveria uma dinâmica de divergência, não de convergência.

Então, o único bom Brexit é um não Brexit. As chances disso aumentaram muito nas últimas semanas. Enquanto em outros lugares o populismo nacionalista prejudicou seriamente o funcionamento da democracia, no Reino Unido a democracia está funcionando. Os parlamentares britânicos estão tratando seriamente seu papel como representantes eleitos em um momento crítico. Ninguém sabe o que vai emergir de seus procedimentos frequentemente obscuros e operísticos. Mas a opção que vai ganhando mais apoio entre os deputados é um segundo referendo.

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É preciso ponderar os riscos de raiva e divisão, no curto prazo, contra os riscos de longo prazo, tanto para o Reino Unido quanto para a Europa. Um referendo seria uma dor de curto prazo para um ganho no longo prazo.

May discursa no Parlamento britânico sobre o Brexit Foto: Reprodução de TV/AFP

Claro que a permanência no bloco pode perder a votação do referendo novamente. Mesmo assim, o país não estaria numa posição pior do que está agora e ninguém poderia argumentar que as pessoas não sabiam no que votavam. O que é certamente verdade é que, para garantir um Reino Unido que construtivamente se reengaje, precisamos alcançar uma margem decisiva para permanecer.

Se você estiver convencido de que construir uma Europa mais forte num mundo perigoso precisa que o Reino Unido exerça seu peso dentro da UE; se você atribuir algum valor ao que o Reino Unido fez pela liberdade europeia na 2.ª Guerra, pela reconstrução da Europa Ocidental no pós-guerra e por ajudar a se livrar do jugo das ditaduras comunistas na Europa Oriental; então vamos ter essa chance. Se alguma coisa que os britânicos fizeram já tocou seu coração; então dê-nos sua solidariedade e apoio. Ao ajudar o Reino Unido, você também estará ajudando a Europa. Obrigado. T.G.A.

É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS NA UNIVERSIDADE DE OXFORD

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