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Artigo: Como a Praça da Paz Celestial mudou a China

A violência pode influenciar as pessoas por um longo tempo, mesmo com a repressão, porque as famílias falam sobre isso em casa

Por Yuhua Wang
Atualização:

No dia 4 de junho de 1989, tanques e soldados cercaram a Praça da Paz Celestial (Tiananmen), em Pequim. De todas as direções, as tropas chinesas mataram centenas de civis que bloqueavam as ruas para proteger os estudantes que ocupavam a praça havia semanas. Soldados abriram fogo quando mais de uma centena de estudantes se recusaram a sair, uma repressão sangrenta contra o mais importante movimento democrático da China.

Em junho de 1989, soldados sufocaram a revolta após sete semanas de manifestações e greves de fome de estudantes e operários que pediam o fim da corrupção e mais democracia. Combinação mostra, acima, manifestantes reunidos perto da estátua Deusa da Democracia em 1989. Abaixo, os tanques que ocuparam a principal avenida de Pequim foram substituídos por inúmeras câmeras de segurança utilizadas para manter a população sob controle - Foto: Catherine Henriette e Greg Baker / AFP

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Nos últimos 30 anos, o regime chinês jamais permitiu uma investigação desses acontecimentos. Os livros didáticos na China ignoram esse trecho da história. Os meios de comunicação não podem informar sobre a repressão, já que o governo proíbe publicações relacionadas ao evento, mesmo em inglês. O tópico se tornou tabu – o governo censura as buscas na internet por “massacre de Tiananmen”, “64” (4/junho), “Homem e tanque” e até mesmo “hoje”. Como esse movimento democrático mudou a China? 

Regime mais repressivo.

O Partido Comunista fez uma reformulação após a supressão de dissidentes em Pequim e outras grandes cidades. Muitos liberais foram afastados, substituídos por conservadores. Muitas reformas políticas, como a introdução de maior competição no interior do partido, terminaram. Em estudo, eu e Carl Minzner, acadêmico da Fordham, mostramos que o regime pós-Tiananmen se tornou mais repressivo, refletido no reforço do poder dos chefes de polícia e no aumento dos gastos da polícia. Nas três últimas décadas, o aparato de segurança expandiu-se. A “manutenção da estabilidade” – um eufemismo do governo para a repressão – tornou-se a principal prioridade do governo.

O Estado de S.Paulo - 06/6/1989 Foto: Acervo/Estadão

Autoridades perseguem e prendem indivíduos que consideram uma ameaça e grande número de funcionários do governo e pessoas recrutadas informalmente vigiam dissidentes políticos, ativistas e advogados. A recente repressão aos uigures – minoria étnica em Xinjiang – sugere que a China se tornou um Estado policial.

Dissidentes silenciosos em alta.

Apesar da censura, pesquisas mostram que a violência do governo contra civis em passado remoto pode deixar uma cicatriz duradoura na identidade política dos cidadãos. Os pais que testemunharam a violência, geralmente, contam as histórias para os filhos. Por isso mesmo, as pessoas nascidas muito depois ainda podem ser afetadas.

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Na madrugada de 4 de junho de 1989, o exército chinês abriu fogo contra milhares de jovens que ocupavam a Praça Tianamen (da Paz Celestial), em Pequim.Eles pediam reformas democráticas ao Partido Comunista, que interpretou a manifestação como sendo contrarrevolucionária.No dia seguinte, um garoto invadiu a Praça da Paz Celestial e fez com que uma fileira de tanques de guerra parasse.A imagemcorreu o mundo e o jovem ficou conhecido como 'O Rebelde Desconhecido de Tianamen' Foto: Stuart Franklin / Magnum

Meu estudo sobre a violência durante a Revolução Cultural da China, de 1966 a 1976, mostra que a repressão do Estado tem efeito duradouro sobre se as pessoas confiam ou não em seus líderes e o quanto elas apoiam o regime, transcorrido quase meio século. 

Analisei os resultados da pesquisa de 2008 sobre a China, da Texas A&M University, que entrevistou uma amostra aleatória de 4 mil chineses. Constatei que os entrevistados que cresceram nas áreas onde foram testemunhados mais assassinatos conduzidos pelo governo, nos anos 60, confiam menos nos atuais líderes e são mais críticos em relação ao regime, condenando a falta de democracia.

Uma razão pela qual a violência pode influenciar as pessoas por um longo tempo é que as famílias falam sobre isso. Minha pesquisa mostra que a geração mais jovem da China – aqueles que não foram testemunhas da violência – ainda são influenciados por ela se seus pais discutem questões políticas em casa. Vivendo sob um governo repressivo, os pais chineses dizem aos filhos que não confiem nos líderes do país.

Minha pesquisa sobre a repressão do governo durante a Revolução Cultural também sugere que a violência deixou muitos na China menos dispostos a protestar contra o governo. Tendo experimentado ou ouvido falar sobre a repressão do governo antes, as pessoas querem proteger-se ao se comportar fielmente em relação ao seu governo. Mas a censura sobre as discussões públicas não apagou a repressão da memória das pessoas. Os legados, portanto, são ambivalentes: a repressão faz com que as pessoas se ressintam do governo, mas também as tornam caladas. Isso resulta em dissidentes mais silenciosos.

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Tais legados tendem a durar muito tempo. Um estudo realizado pelos historiadores econômicos Melanie Meng Xue e Mark Koyama demonstra que as pessoas nas localidades que testemunharam a repressão do Estado na China do século 17 ainda exibem atitudes diferentes em relação ao governo do que pessoas de outros lugares.

Silenciosos podem agir.

Enquanto os descendentes das vítimas da repressão tendem a permanecer em silêncio quando o regime é forte, eles entram em ação assim que o governo mostra sinais de fraqueza. Aqui está um exemplo. Em 1944, depois que a União Soviética recapturou a Crimeia da Alemanha, o Exército Vermelho acusou todos os tártaros da Crimeia de colaborar com os nazistas e os deportou para o Usbequistão. Os cientistas políticos Noam Lupu e Leonid Peisakhin estudaram as famílias das vítimas da deportação e demonstraram que, mesmo anos depois da queda da União Soviética, elas mantêm atitudes hostis em relação à Rússia e participam mais da política.

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Em outro estudo, os cientistas políticos Arturas Rozenas, Sebastian Schutte e Yuri Zhukov mostram que as comunidades na Ucrânia que foram reprimidas por Stalin, na década de 40, são mais propensas a se opor aos partidos pró-russos. Rozenas e Zhukov, em estudo recente, demonstram que quando um regime não consegue controlar a sociedade usando a força, as vítimas da repressão do passado se mobilizam em massa contra o regime.

PC em dilema.

O Partido Comunista Chinês, há 30 anos, sobreviveu a um desafio crítico ao seu domínio, mas a estrutura governamental e a sociedade que emergiram vão representar ameaças sempre presentes à sobrevivência do partido. Minha pesquisa sugere que o expandido regime de segurança da China requer alocações orçamentárias significativas para atividades policiais a cada ano em todos os níveis de governo. Isso desvia o financiamento de programas produtivos e de melhoria do bem-estar, como educação e saúde.

O que virá a seguir para a China? O economista Timur Kuran mencionou um “elemento-surpresa” na revolução do Leste Europeu de 1989: todos pareciam leais ao regime até que subitamente aderiram à revolução. Os dissidentes silenciosos na China podem ser uma fonte de surpresa se o regime não conseguir sustentar o elevado poder coercitivo. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE HARVARD 

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