Por que a acusadora de juiz indicado por Trump à Suprema Corte esperou 37 anos para dizer algo?

Em muitos casos, mulheres são consideradas culpadas quando relatam situações nas quais foram abusadas, o que faz com que algumas prefiram ficar em silêncio mesmo que isso comprometa sua saúde mental e física

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Por Petula Dvorak
Atualização:

As confissões continuam chegando.

Uma amiga compartilhou sua provação #MeToo na semana passada, inspirada na alegação de Christine Blasey Ford de que ela sofreu abuso sexual pelo indicado à Suprema Corte Brett Kavanaugh quando eles estavam no ensino médio.

Manifestantes protestam na frente da Suprema Corte dos EUA antes de o juiz Brett Kavanaugh ser interrogado no Senado Foto: Photo by Chet Strange / AFP

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"Eu era pré-adolescente quando fui abusada pela primeira vez. Às vezes, leva décadas para que as vítimas se apresentem", escreveu ela no Facebook, em resposta a um amigo que criticou Christine por esperar 37 anos para acusar Kavanaugh de atacá-la.

Minha amiga esperou 40 anos para falar. Ela quebrou o silêncio porque se livrou de todas as dúvidas de Christine, a professora de psicologia que agora enfrenta ameaças de morte por contar sua história. Minha amiga entende as décadas de silêncio de Christine.

Ela estava determinada a ficar quieta mesmo quando seu agressor morresse - e mesmo quando ela foi encarregada de escrever seu obituário para o jornal local, respirando fundo e digitando as realizações dele no teclado ao mesmo tempo em que enterrava seus segredos com ele.

Isso surpreende você? Não deveria. Ele era um amigo da família. Todos o respeitavam. Ela não queria destruir a vida dele.

E ela sabia que seria considerada culpada, como muitas vezes as mulheres são quando são abusadas. Por que ele faria isso? O que você estava fazendo lá em primeiro lugar? Você o levou? Por que essa saia é tão curta? Abotoe essa blusa. O que em nome de Deus há em seu rosto? Limpe esse batom agora mesmo.

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O que a mãe da minha amiga disse quando ela finalmente contou? "Eu também."

Sua mãe disse que tinha 17 anos, presa em um quarto de hotel em Washington, com um vendedor ambulante, no qual sua família confiava.

Somos boas em segredos. E confissões. Às vezes, basta uma xícara de café ou uma garrafa de vinho para que eles venham. Esta mês, eles foram acionados por uma indicação à Suprema Corte:

"Festa de formatura."

"O armário de suprimentos do ginásio esportivo."

"A casa dos pais dele."

Mas é diferente agora, você acha? De modo nenhum.

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No mês passado eu me encontrei com uma jovem que disse ter sido abusada quando era uma garotinha por um dos pais que todos na comunidade conheciam. As grandes festas de Natal de sua família foram terríveis porque ele estava sempre lá, rejubilando-se de alegria em sua casa como um dos convidados, enquanto ela se escondia em seu quarto.

"Existiam todas aquelas outras vidas que eu machucaria se contasse", ela disse.

Manteve-se quieta, deixando que isso consumisse seu senso de personalidade, suas notas, suas atividades, devastada toda vez que ele olhava para ela na mercearia ou nas festas de aniversário. Ela criou desculpas confusas para seus pais sobre as intempestivas mudanças de humor.

Isso está acontecendo hoje, gente, em um subúrbio agradável de Washington, no "futuro é mulher" - na era MeToo de capacitar a educação e famílias progressistas.

Décadas de pesquisa mostram que as mulheres raramente relatam tais ataques.

Até mesmo especialistas - médicos, juízes, policiais - duvidam de mulheres que denunciam ataques, de acordo com o relatório de 2006 "Sendo silenciada: O Impacto das Reações Sociais Negativas na Divulgação das Sobreviventes". 

Entrevistadas por Courtney E. Ahrens, agora professora de psicologia em Cal State Long Beach, muitas disseram que elas tinham dúvidas, foram consideradas culpadas e até mesmo punidas ao relatar os ataques sofridos. Então elas ficaram quietas, mesmo que isso comprometesse sua saúde mental e física.

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É claro que também há centenas de milhares de homens que foram agredidos sexualmente e ficaram em silêncio por motivos semelhantes. A Igreja Católica e os Escoteiros da América podem fornecer-lhe milhares de páginas de leitura para compreender essa calamidade.

Sobreviventes de agressão sexual começam a ser julgados no momento em que falam. Então eles não falam. E isso nos leva ao coro tranquilo de "uh-huhs" em todo o país quando a confissão de Christine transformou-se em notícia.

Minha amiga que escreveu o obituário de seu agressor tem uma ideia sobre isso. E eu acho ótima.

"Será que todas as vítimas de agressão sexual que permaneceram em silêncio todos esses anos não deveriam convergir para Washington a fim de dar apoio à professora Ford e seu testemunho contra o juiz Kavanaugh?" ela perguntou. 

"Como uma vítima durante muito tempo silenciosa, eu digo: 'Droga, sim.' Às vezes são necessárias décadas para enunciar a sua verdade. Permaneça ereta e orgulhosa, professora Ford. Legiões de mulheres e homens silenciosos e traumatizados estão com você. Vamos expor este segredo sujo e não tão pequeno."

O que você diz? Se lançarmos uma #MeToo Marcha sobre Washington para todo mundo que ficou em silêncio todos esses anos, aposto que seria a maior marcha da história da capital americana. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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