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Artigo: Raúl influenciou mudança para a esquerda da revolução

Ele começou como um rebelde pró-Moscou e, mais velho, mostrou aptidões administrativas mais pragmáticas

Por Michael Bustamante
Atualização:

Em mais de uma década no principal cargo da ilha, Raúl Castro pôs Cuba no rumo de uma significativa (embora arrastada) reforma econômica. O “jovem” Castro também fez algo que o irmão mais velho não conseguiu: restaurou relações diplomáticas com os Estados Unidos. Mas é por meio de suas contradições que melhor podemos entender a longa passagem de Raúl pela história cubana, e os consideráveis desafios que deixa para o sucessor.

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Em foto de 1957, Fidel Castro (o mais alto na foto) e Raul Castro (agachado) estão ao ladode Ernesto Che Guevara e outros integrantes da guerrilha em Sierra Maestra Foto: AFP PHOTO

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Apesar de ter começado a carreira como rebelde e agitador, Raúl Castro ajudou posteriormente a construir um Estado menos dependente do carisma do irmão mais famoso. Numa idade mais avançada, o veterano ideólogo socialista mostrou aptidões administrativas pragmáticas, afastando-se de algumas velhas ortodoxias antimercado. Mas, no fim, acabou presidindo um governo confinado entre uma arraigada tendência controladora e intensas pressões para a evolução.

Raúl começou como um imprevisível combatente na guerra de guerrilha de Fidel nos anos 50. Mas, diferentemente do irmão e dos rebeldes mais radicais, ele vinha de laços com a Juventude Socialista de Cuba quando entrou na guerra para depor Fulgencio Batista, apoiado pelos EUA. Essa filiação política e uma tendência pró-soviética mais tarde ajudaram-no a forçar para a esquerda a revolução cubana. No fim da guerra, o antiamericanismo de Raúl – mais que suas tendências ideológicas – levou Fidel, mais estrategista, a considerá-lo ousado demais.

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Como relata a historiadora Lillian Guerra, em junho de 1958 guerrilheiros de Raúl fizeram reféns cerca de uma dúzia de funcionários estrangeiros de mineradoras americanas no leste de Cuba e 24 fuzileiros navais dos EUA que estavam de licença da base americana de Guantánamo. 

A iniciativa, coberta por equipes de TV estrangeiras, foi orquestrada como um protesto contra o apoio encoberto de Washington às forças de Batista. Em público, Fidel apoiou o sequestro, mas privadamente desaprovou, preocupado em não antagonizar abertamente apoiadores da revolução no exterior. 

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Para observadores americanos, lances de propaganda como esse caracterizavam Raúl como um dos radicais (ao lado de Che Guevara) do grupo próximo a Fidel. Pelos critérios da Guerra Fria, eles estavam certos.

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Hoje sabemos que foi Raúl quem lançou a primeira ponte, secreta, entre o incipiente governo revolucionário e a União Soviética, em abril de 1959. Isso ocorreu apenas quatro meses depois de os rebeldes descerem vitoriosos das montanhas e simultaneamente a uma visita de Fidel a Washington, na qual ele assegurou à audiência do programa Meet the Press que sua revolução não era comunista.

Mas as inclinações pró-Moscou de Raúl na verdade acabaram fazendo dele mais um fator de estabilidade que de tensão. Quando, em meados dos anos 60, surgiram atritos entre Cuba e a União Soviética sobre o apoio cubano a movimentos revolucionários no exterior (que os soviéticos viam como “aventurismo”), Raúl defendeu a aliança com a URSS. Na mão contrária, Che Guevara acusou o bloco socialista de “cumplicidade tática com países ocidentais exploradores”.

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O presidente de Cuba, Raúl Castro (E), acena ao lado do primeiro vice-preisdente, Miguel Díaz-Canel, único candidato a se apresentar para sucedê-lo no comando do país Foto: AFP PHOTO

A organização das Forças Armadas cubanas por Raúl (com assistência e material soviético) reforçou vocação para a realpolitik. Mas, como ministro da Defesa, ele também supervisionou, direta ou indiretamente, uma injustiça cometida contra uma faixa de cubanos. A pretexto de cumprir o serviço militar obrigatório, milhares de cubanos foram mandados, entre 1965 e 1968, para centros que eram uma combinação de unidades militares com campos de trabalho. Esses centros ficaram conhecidos como Unidades Militares de Auxílio à Produção (Umaps). 

O propósito das Umaps, contudo, não era treinamento militar. Na verdade, à medida que a cidadania revolucionária se tornava cada vez mais lastreada em uma masculinidade excludente, os campos passaram a ser um meio de “reabilitar” moralmente homossexuais, verdadeiros ou suspeitos, por meio de trabalho.

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Embora não haja evidências documentais do envolvimento de Raúl na criação das Umaps, o episódio revela a crueza das lutas culturais internas da revolução, cujas memórias o governo fez desaparecer. Apenas em 2010, e indiretamente, Fidel admitiu a existência das Umaps. Raúl nunca admitiu.

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Em 1989, Cuba obteve sucessos militares substanciais sob a liderança de Raúl – mais notadamente, uma campanha de 14 anos em Angola na qual Cuba se alinhou com a facção marxista na guerra civil. Mas a queda da URSS forçaria Cuba a se abrir para o capital ocidental e o que considerava vícios capitalistas: turismo de massa, dólares, prostituição e forças do mercado. 

As Forças Armadas de Raúl estiveram à frente da administração dessas mudanças. Militares de confiança deixaram de lado as armas e foram atrás de MBAs na Europa e Canadá. Empresas militares fizeram parcerias com sócios estrangeiros. Lojas que só aceitavam moeda forte canalizaram para os cofres do governo dólares que circulavam no mercado negro da ilha – em tese, esses dólares voltavam para instituições estatais ligadas ao bem-estar social. 

Mas novas desigualdades surgiram. Cubanos empregados no setor turístico eram pagos em dólar, ganhando muito mais que seus pares do vasto setor público, cujos salários ficavam cada vez mais defasados. 

Tais desafios à ética socialista intensificaram-se depois que Fidel adoeceu, em 2006, com Raúl substituindo-o como chefe de Estado dois anos depois. Em 2010, o novo presidente começou a pôr em andamento um amplo projeto para “atualizar o modelo econômico e social de Cuba”. Mais especificamente, o Estado começou a demitir meio milhão de trabalhadores, ao mesmo tempo em que permitia a expansão de negócios privados. 

Muitos cubanos correram para tirar vantagem das oportunidades. O momento também parecia abrir várias possibilidades políticas, com discussões sobre mais abertura. Mariela, filha de Raúl, tornou-se a face pública de um movimento de proteção aos direitos dos gays sancionado pelo Estado. 

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Mas quem não tinha acesso a fundos para abrir restaurantes e hospedarias sentiu-se excluído. Outros, que viam o governo reservar as oportunidades mais lucrativas para si, perguntavam-se se o “socialismo” cubano estava se tornando capitalista por meio do Estado.

Obama. Então veio a decisão de Barack Obama e Raúl de dar início à normalização de relações diplomáticas, em 2014. Mas, em meio à onda de euforia e do aumento de visitantes americanos, aumentava também a ansiedade entre os legalistas no governo. 

Em 1972, Raúl investira contra a transformação do imperialismo americano em “ofensiva ideológica pacífica”. Não seria também essa a agenda de Obama? Não seria a “mão estendida” do presidente americano um cavalo de Troia para o capitalismo voltar a dominar a sociedade cubana? A morte de Fidel, oito meses depois da histórica visita de Obama a Cuba, em março de 2016, levou críticos de Raúl a lembrar ao país que a ideologia socialista continuava presente em todo o projeto revolucionário. 

O cancelamento parcial por Donald Trump do “mau acordo de Obama sobre Cuba” minou a boa vontade bilateral que poderia incentivar mais reformas na ilha. O governo de Raúl pode um dia ser lembrado como uma ponte, algo mais que a soma de contradições que marcaram sua carreira. Mas, para isso acontecer, primeiro as aspirações dos cubanos por mais oportunidades econômicas e políticas têm de ser atendidas. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

É PROFESSOR DE HISTÓRIA NA UNIVERSIDADE INTERNACIONAL DA FLÓRIDA

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