Artigo: Uma presidente Le Pen e um referendo sobre o Frexit

Em Paris, começam a considerar com seriedade uma até então impensável vitória da extrema direita nas eleições presidenciais de 2017 

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Por TIMOTHY GARTON ASH
Atualização:

Conseguiria uma presidente Marine Le Pen ativar o Artigo 50 sem o voto parlamentar? O Artigo 50 do Tratado de Lisboa seria acionado para retirar a França da União Europeia, seguindo o mesmo caminho do Reino Unido. Esse foi o assunto que discuti em Paris com importantes analistas franceses, quando nos reunimos na casa em que Jean Monnet certa vez trabalhou para estabelecer as bases da unidade europeia. 

Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional francesa, defendeu ofim da educação gratuita para os estrangeiros irregulares Foto: MATTHIEU ALEXANDRE / AFP

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Uma conclusão provisória foi alcançada: como a França, ao contrário do Reino Unido, é uma democracia presidencial, Marine poderia acionar o artigo por contra própria. O simples fato de meus amigos franceses levantarem o assunto, mesmo que hipoteticamente e como brincadeira, é um sinal dos tempos. O que disse Rousseau? “Ser sensato em um mundo de loucos já é uma espécie de loucura.” 

Naturalmente, é impensável que a líder da Frente Nacional, agremiação populista de extrema direita e contra a imigração, consiga se eleger presidente da república francesa nas eleições de maio. Também era impensável que o Reino Unido viesse a votar em favor da saída da União Europeia e os Estados Unidos elegessem Donald Trump. 

Estive em Paris, em parte, para me certificar de que o impensável não se verificaria novamente. Voltarei para Londres longe de estar tranquilo. Muitos de meus interlocutores acreditam que Marine será derrotada por François Fillon, candidato de centro-direita.

No segundo turno da eleição, os eleitores de centro-esquerda se unirão, mesmo a contragosto, em torno de Fillon, pelo bem da República. Afinal, em 2002, eles votaram em Jacques Chirac para afastar Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, fundador da Frente Nacional, achando que “melhor o ladrão do que o fascista”. 

Votos de protesto em eleições europeias e locais são uma coisa, mas uma eleição presidencial é algo sério. Fillon, com seu forte patriotismo católico e conservador e personalidade sólida e tranquilizadora, pode conquistar muitos eleitores da Frente Nacional nas zonas rurais, semiurbanas e suburbanas da França. 

Favoritismo nas urnas. Com base em pesquisas recentes, ambos os candidatos devem obter em torno de um quarto dos votos no primeiro turno, marcado para 23 de abril. No entanto, no segundo turno, em 7 de maio, Fillon ficaria com dois terços dos votos. Até agora, a opinião dominante é a de que as pesquisas, pelos menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, erraram de maneira cabal. 

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Agora, falemos das dúvidas. Fillon combina o conservadorismo social com o liberalismo econômico, algo inusitado na França e, em ambos os casos, corre o risco de afastar os eleitores. Ele assume posições católicas em temas como maternidade de substituição e casamento gay.

Ao mesmo tempo, defende uma desregulamentação da economia, o corte de 500 mil empregos no setor público, uma reforma do sistema nacional de saúde e redução dos benefícios sociais. Recentemente, o jornal Libération colocou na sua capa uma caricatura dele travestido de Margaret Thatcher. 

Vozes já se levantam contra um “thatcherismo” francês, mesmo dentro do próprio partido. Para os eleitores vindos da esquerda fragmentada, pode ser demais para ser engolido, de modo que, talvez, eles se abstenham no segundo turno. 

No entanto, esse liberalismo econômico torna Fillon vulnerável entre os eleitores da classe operária e os pequenos burgueses de que ele necessitará para vencer a Frente Nacional. Esses eleitores querem ser tranquilizados e protegidos, não ameaçados pelo estilo Thatcher. 

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Mas o que prevalece é uma sensação geral de mal-estar. O crescimento econômico mal chegou a 1% no ano passado e o nível de desemprego está próximo de 25%. Existe um ressentimento contra a classe política, que o cidadão considera distante, interesseira e corrupta. Além disso, há um desejo generalizado de se dar um bom pontapé em todo esse sanguinário sistema. 

Movimento global. Embora Fillon não pertença à elite parisiense clássica, ele claramente é do establishment. Como disse um partidário de Marine Le Pen, “Fillon é o sistema”. E a História parece avançar no momento, com Trump e o Brexit normalizando as opções populistas.

Por fim, Marine Le Pen é uma forte candidata, o modelo perfeito do populista moderno, que defende todos esses argumentos. Se tiverem algum tempo, vejam a página oficial da Frente Nacional e assistam a uma entrevista que ela concedeu a um canal de TV na França. 

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Lá está ela, sorrindo, com uma bela rosa azul (símbolo que ela apropriou dos socialistas, mas mudando a cor) colocada entre as palavras “Marine” e “presidente”. Ela seria a primeira presidente mulher da história da França. 

Na entrevista, Marine demonstra o mesmo talento de Nigel Farage ou de Trump para se expressar na linguagem do cidadão comum. Ela diz que está disputando a eleição “em nome do povo” e Fillon é candidato “da Comissão Europeia, dos bancos, de (Wolfgang) Schäuble (ministro de Finanças alemão)”. 

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Marine defende a “retomada do país e a democracia”, acrescentando que “muitos países já fizeram sua escolha. Ela menciona os Estados Unidos, o Reino Unido e o “não” dos italianos no referendo constitucional recente que derrubou o premiê Matteo Renzi. E defende também os “direitos das mulheres”. 

Frexit. O que fará Marine com relação à Europa? Ela pretende convocar um referendo sobre a permanência da França na União Europeia. Ela organizará esse referendo, afirmou enfaticamente, e respeitará o resultado das urnas. 

Não, eu não estou prevendo um Frexit. Se algo pode ser dito com certeza sobre os franceses é que eles não têm uma atitude britânica no tocante à Europa. No entanto, o dia 9 de maio, dois dias depois de decidida a eleição presidencial na França, poderá ser um dia muito triste – e Monnet estará se contorcendo em sua tumba. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

*É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS NA UNIVERSIDADE OXFORD

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