Ásia reivindica ''fardo'' modernizador

Após fracasso ocidental, tarefa de transformar o mundo é agora da Ásia, diz analista de Cingapura

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No final do século 19, Rudyard Kipling, o poeta do Império Britânico, descreveu no poema O Fardo do Homem Branco quais eram as tarefas inadiáveis dos europeus ocidentais em relação aos "semidiabos", isto é, os povos bárbaros que habitavam o restante do mundo: lutar as "guerras selvagens pela paz" e "encher a boca dos famintos", mesmo ao custo de granjear o "ódio daqueles que você guarda". Um século depois, o chamado de Kipling continua a ser atendido, agora em nome dos "valores democráticos". Mas, para o ex-diplomata e cientista político cingapuriano Kishore Mahbubani, autor de O Novo Hemisfério Asiático: A Irresistível Mudança do Poder Global para o Oriente, esse estado de coisas está com os dias contados - o fardo agora está nas costas dos asiáticos, porque o continente concentra a maior parte da população mundial, terá as maiores economias e está preparado diplomática e politicamente para assumir a responsabilidade de dirigir os destinos do mundo. Leia a seguir os principais trechos da entrevista Leia íntegra da entrevista Por que o senhor pensa que este seja o ?século da Ásia?? Os asiáticos formam o grosso da população mundial, com cerca de 3,5 bilhões de pessoas. Se esse contingente fizer só metade do que fazem os europeus (700 milhões) ou os americanos (300 milhões), eles serão a maior fatia da economia mundial. O famoso estudo da Goldman Sachs sobre os BRICs previu que, por volta de 2050, as quatro maiores economias do mundo serão China, Índia, EUA e Japão. Nenhuma única economia européia estará entre as quatro principais, mesmo que a Europa tenha sido dominante nos séculos 19 e 20. Devemos nos lembrar que as duas maiores economias mundiais entre o ano 1 e o ano 1820 eram China e Índia. Desse modo, no século 21, estaremos voltando ao normal, ou seja, a Ásia hospedando as maiores economias do mundo. Em linhas gerais, como será o mundo neste ?século asiático?? O retorno da Ásia apresenta ao Ocidente duas opções: ele pode resistir ou pode se acomodar às novas potências asiáticas. Agora mesmo, tanto os EUA quanto a União Européia estão enviando sinais ambíguos. Em sua retórica, eles celebram a volta da Ásia. Reservadamente, contudo, eles se expressam de modo mais negativo. O G-8 é claramente uma organização crepuscular. Representa as potências econômicas do passado, e não do futuro. O grande paradoxo sobre nossa situação global é que temos uma ordem mundial não-democrática, onde 12% da população do mundo vive no Ocidente e é essa população que toma as decisões em nome dos restantes 88%, ao dominar as instituições globais. Por outro lado, os 12% vivem nas mais democráticas sociedades do mundo. Ou seja: em casa, eles são democráticos; fora, eles não são. Quais são os problemas causados pela resistência do Ocidente em admitir essa suposta nova realidade asiática? Primeiro, pode ameaçar e desestabilizar a ordem jurídica estabelecida pelo Ocidente em 1945. Sob essa ordem, Japão e Alemanha puderam se reerguer pacificamente como grandes potências, sem a necessidade de ir à guerra. Agora que potências como China e Índia estão emergindo, o Ocidente pode começar a renegar as regras que ele mesmo estabeleceu. Uma segunda ameaça é a representada pelo protecionismo. As economias ocidentais eram as campeãs da causa do livre comércio porque imaginavam que, no campo de jogo criado para assegurar a abertura do comércio internacional, as economias ocidentais surgiriam como vencedoras. Hoje, infelizmente, eles começam a, gradualmente, se afastar do ideal do livre comércio e, silenciosamente, se tornam protecionistas. Em terceiro lugar, a China e outras potências asiáticas têm respondido positivamente ao pedido de Robert Zoellick, o atual presidente do Banco Mundial, para se comportar como "investidores responsáveis". Mas a decisão dos EUA e da Grã-Bretanha de invadir o Iraque sem uma resolução legitimadora do Conselho de Segurança da ONU não é nada responsável. Se as potências ocidentais violam a lei internacional, como eles podem ter credibilidade para exigir que as potências asiáticas a respeitem? Os países asiáticos estão preparados para liderar o mundo? A maioria dos países asiáticos, incluindo a China e a Índia, está focada em seu desenvolvimento econômico doméstico. Eles estão empenhados em manter isso, sem se desviar por causa de outros estudos. Qual é, afinal, o ?fardo do homem asiático?? A humanidade deve ser grata à civilização ocidental pela rica herança deixada ao mundo. De fato, a "marcha para a humanidade" que se acelera agora na Ásia não teria sido possível sem o Ocidente. Em meu livro, eu explico como as sociedades asiáticas estão conseguindo adotar com sucesso os sete pilares da sabedoria ocidental - economia de livre mercado, avanço na ciência e na tecnologia, meritocracia, pragmatismo, cultura de paz, Estado de Direito e promoção da educação. Todas as bem-sucedidas sociedades asiáticas deveriam agradecer ao Ocidente. Com esse sucesso, as sociedades asiáticas terão de assumir responsabilidades globais maiores.

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