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Uso de doses de reforço contra Ômicron dificulta chegada de vacinas a países pobres

Variante ocasionou uma corrida por doses de reforço de vacinas contra covid-19 nos países ricos

Por Adam Taylor
Atualização:

A variante Ômicron do novo coronavírus ocasionou uma corrida por doses de reforço de vacinas contra covid-19 nos países ricos.  Outros países de renda alta também estão impulsionando a aplicação de doses de reforço das vacinas, superando uma hesitação anterior em oferecer doses-extra — além do regime de uma ou duas doses aprovado inicialmente, dependendo do fabricante dos imunizantes. Mas enquanto essas doses de reforço são ministradas com rapidez recorde, muitas pessoas em países mais pobres ainda esperam a primeira dose.

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Cerca de 54 milhões de doses de reforço foram aplicadas nos Estados Unidos até o domingo, contra 64 milhões de doses, no total, administradas em países de renda baixa, de acordo com o site Our World in Data. E essa diferença poderá logo diminuir: ainda que o ritmo de vacinação esteja aumentando nos países de renda baixa, conjuntamente eles só conseguiram ministrar mais de 1 milhão de doses diárias em três oportunidades até agora. 

De acordo com o Banco Mundial, aproximadamente 665 milhões de pessoas vivem em países classificados como de renda baixa, o que significa que apresentam uma renda nacional bruta per capita menor que US$ 1.045 (cerca de 60 vezes inferior à dos EUA). A vasta maioria desses países localiza-se na África Subsaariana. Países arruinados por guerras, como Iêmen e Afeganistão, também se enquadram nessa categoria. 

Enfermeira prepara aplicação de vacina na cidade de Dutywa, na África do Sul; estudo da Universidade de Oxford aponta que variante Ômicron causa "queda substancial" do nível gerado de anticorpos neutralizantespor duas doses dos imunizantes da Pfizer e da AstraZeneca Foto: REUTERS/Siphiwe Sibeko - 29/11/2921

As doses de reforço simbolizam há muito a iniquidade no acesso às vacinas. Das mais de 360 milhões de doses-extra ministradas no mundo, quase todas foram aplicadas em países de renda alta e média-alta. Menos de 8 milhões de doses de reforço foram ministradas em países de renda média-baixa, enquanto o número de doses-extra aplicadas em países de renda baixa é zero — ou tão próximo a zero que chega a ser insignificante. 

A dicotomia nas doses de reforço espelha uma desigualdade mais ampla nas vacinações. Considera-se que somente 3,4% da população dos países de renda baixa e 30% dos habitantes dos países de renda média-baixa foram totalmente vacinados, o que coloca esses países muito atrás de países ricos como EUA ou Reino Unido, onde aproximadamente 60% e 70% das pessoas, respectivamente, completaram o regime vacinal.

Covax não decola

Iniciativas globais para se contrapor à prática de estocar vacinas e à desigualdade vacinal têm ocorrido. O Covax, um esforço apoiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) criado com o objetivo de levantar dinheiro para garantir o fornecimento de vacinas a países pobres, pretendia inicialmente disponibilizar 2 bilhões de doses em 2021. Agora, o Covax luta para conseguir cumprir uma meta bem diminuta, de entregar 800 milhões de doses este ano, conforme noticiei na semana passada. 

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A variante Ômicron levantou novas dúvidas a respeito de quanto essas vacinas conseguirão proteger as pessoas. Dada a aparente capacidade da nova cepa de evitar os anticorpos criados pelas vacinações, alguns especialistas estão sugerindo que a definição de estar “completamente vacinado” deveria incluir as doses de reforço. Mesmo quem recebeu as vacinas altamente efetivas contra as outras variantes — como das empresas Pfizer/BioNTech e Moderna, que usam tecnologia avançada de mRNA — está ouvindo do primeiro-ministro britânico e de outras figuras que doses adicionais poderão ser necessárias para imunizar-se completamente contra a Ômicron. 

Isso pode não parar aí. Executivos da gigante farmacêutica Pfizer afirmaram na semana passada que a nova variante poderia aumentar a probabilidade de as pessoas necessitarem de uma quarta dose de vacina. Até agora, as autoridades americanas não mudaram a definição de “completamente vacinado”. 

“Neste momento, não vejo isso mudando amanhã ou na próxima semana”, afirmou Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional para Alergias e Doenças Infecciosas, em entrevista à CNN, no domingo. Mas ele acrescentou posteriormente: “Será uma questão de tempo.” 

A OMS — que pediu uma moratória na aplicação de doses de reforço até que os países pobres obtenham maior acesso às doses iniciais — continua a se opor francamente às doses adicionais, mesmo frente à disseminação da Ômicron. 

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“Doses de reforço provavelmente não são a solução para isso, infelizmente”, disse a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, durante uma entrevista coletiva na semana passada, afirmando que a maioria dos mortos por covid-19 no mundo continua a ser pessoas que não tomaram nenhuma dose de vacina. 

A OMS sugeriu, contudo, que indivíduos que receberam vacinas menos eficazes, das empresas Sinovac e Sinopharm, deveriam tomar uma dose-extra, assim como pessoas com sistemas imunes enfraquecidos.

Figuras-chave para a iniciativa Covax alertaram que campanhas de vacinação com doses de reforço prejudicaram um sistema em que as vacinas já são escassas. 

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Se doses de reforço são necessárias para proteger contra a Ômicron, isso significa que “o mundo que caracterizamos como imunizado está efetivamente menos imunizado do que antes, e por isso ele consome mais doses”, disse-me esta semana Orin Levine, especialista em vacinações da Fundação Bill & Melinda Gates e apoiador-chave da iniciativa Covax.

Por agora, isso pode ser um argumento teórico. Apesar da velocidade com que a Ômicron está se espalhando, a vasta maioria dos casos de covid-19 registrados em todo o mundo ainda está ligada à variante Delta. Mas isso poderia mudar rapidamente: autoridades britânicas alertaram que a Ômicron logo poderá superar a Delta, enquanto Johnson confirmou, na segunda-feira, a primeira morte atribuída à Ômicron no Reino Unido.  

Os lugares menos vacinados têm muito a temer. Na revista médica British Medical Journal, Fatima Hassan, Leslie London e Gregg Gonsalves argumentam que o surgimento da variante Ômicron no sul da África está ligado a “acesso desigual e vagaroso às vacinas contra covid-19”, o que permitiu ao vírus se espalhar por países pouquíssimo vacinados. 

E este não é o único problema, escrevem eles: “O ônus sanitário e socioeconômico dos casos de covid-19, internações e mortes será sentido desproporcionalmente nesses países” — países onde a luta é pelas primeiras doses, não pelas doses de reforço. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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