A Alemanha de Angela Merkel teve que quebrar seus bloqueios orçamentários durante a crise de 2019, injetando bilhões de euros para apoiar empresas e salvar empregos, tornando a disciplina financeira um tema quente na campanha eleitoral deste ano, que tem os sociais-democratas do SPD na liderança, seguidos da União Democrata Cristã (CDU) — de Merkel — e dos Verdes.
Na reta final antes das eleições de 26 de setembro, a questão da dívida pública é uma das frentes favoritas dos conservadores da CDU-CSU, ameaçada de derrota histórica, perante os social-democratas. Mas temas como o enfrentamento às mudanças climáticas e o papel do país na União Europeia também estão em jogo.
Após 16 anos no cargo, Merkel prepara-se para deixar o cargo depois de quatro mandatos. A chanceler de 67 anos, que governa a principal economia europeia desde 2005, anunciou em outubro de 2018, quando a CDU sofreu um revés eleitoral na região de Hessen, que não voltaria a candidatar-se.
O atual será “o último”, diz Merkel, que também não quer seguir uma carreira nas instituições europeias, como especularam alguns meios de comunicação social. É a primeira vez desde 1949 que um chefe de governo em saída do cargo decide não se candidatar.
Eleita pela primeira vez a 22 de novembro de 2005, Merkel aproxima-se do recorde de longevidade do colega democrata-cristão Helmul Kohl, que serviu como chanceler durante mais de 16 anos (5.689 dias) entre 1982 e 1998, gerindo a reunificação do país.
Ela já ultrapassou Konrad Adenauer, o chanceler do milagre econômico do pós-guerra, que governou a Alemanha Ocidental durante 14 anos.
Transição e coalizão
Merkel não deixará o cargo na noite das eleições. A chanceler permanecerá nas funções até à nomeação de seu sucessor no parlamento alemão.
Este período de transição pode durar longas semanas ou meses, o tempo necessário para que os partidos formem uma maioria para formar um governo de coalizão.
Em 2005, a CDU e o SPD — os dois maiores partidos da Alemanha — levaram dois meses para formar o chamado grande governo de coalizão.
Mas, após as eleições de setembro de 2017, as negociações arrastaram-se até fevereiro de 2018: a CDU tentou primeiro aliar-se aos Verdes e ao partido liberal FDP, mas acabou por ter de fazer um acordo com o SPD.
Adaptação do modelo econômico e industrial
A Alemanha está no centro do debate, especialmente o futuro de sua poderosa indústria automotiva, que tem sido dizimada pelo declínio dos motores de combustão, que coloca em risco 800.000 empregos diretos gerados pelo setor.
A digitalização da administração também na agenda de todos os candidatos, num país que está “muito atrasado nesta matéria”, diz Paul Maurice, membro do Comitê de Estudos Franco-Alemão.
Papel alemão na Europa
Como principal potência econômica do bloco, a Alemanha desempenha um papel central na União Europeia.
Desde a crise financeira ao conflito ucraniano ou à questão da migração, a influência internacional alemã cresceu nos “anos Merkel”.
O novo chefe de governo pode dar um novo ímpeto ou implementar uma gestão mais prudente, mas não com a ambição que caracterizou Merkel, salientam analistas.
O desenvolvimento do duo franco-alemão, a força motriz da UE, será acompanhado de perto, especialmente porque as eleições também se realizarão na França em abril de 2022.
“Esperamos que a Alemanha seja uma força de mudança ainda mais importante a nível europeu”, disse Maurice.
“Mudar regras orçamentárias” ou “reduzir o déficit público”
O resultado eleitoral é incerto, mas não há dúvida que será decisivo para o futuro do país. Friedrich Merz, encarregado de assuntos econômicos do candidato bávaro da CSU, Markus Soder, comparou o programa do SPD de Olaf Scholz, que se autoproclama o “chanceler da dívida”, com promessas de “cerveja grátis”, cuja conta ficará para os contribuintes.
Independentemente de quem saia vencedor na disputa, o futuro governo enfrentará uma "escolha difícil", avisa Patrick Artus, economista-chefe da Natixis. Pois precisará “mudar regras orçamentárias” que não são mais compatíveis com a realidade ou “reduzir drasticamente o déficit público”.
Na Alemanha, o orçamento equilibrado, consagrado na Constituição, sofreu uma revolução inimaginável antes do impacto da pandemia: um plano de ajuda econômica bilionário, sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, foi posto em prática para limitar os efeitos da recessão.
Em dois anos de crise sanitária, o país contraiu cerca de 370 bilhões de euros em novas dívidas, dos quais 240 bilhões em 2021, que passaram de 59,7% do PIB para quase 75% previstos para este ano.
Despesas "colossais"
Embora uma parte dos europeus tenha regularmente exigido menos rigidez orçamentária dos alemães nos últimos anos, a ambição forçou Berlim a revogar o freio da dívida, uma regra escrita na Carta Magna desde 2009.
Em períodos normais, esta imposição proíbe o Executivo de tomar emprestado mais de 0,35% do seu PIB, exceto em “circunstâncias excepcionais” aprovadas pelo Parlamento.
No primeiro semestre de 2021, o déficit público ultrapassou os 80 milhões de euros — 4,7% do PIB —, novamente longe do objetivo do “déficit zero” escrupulosamente respeitado em 2014 e 2019.
Isso é apenas um hiato ou uma reviravolta duradoura para a economia líder da Europa?
A pressão já era forte, antes da pandemia, para que a Alemanha começasse a ceder e investir em infraestrutura.
Com a volta do crescimento econômico, a União Europeia corre o risco de se dividir novamente entre os defensores de um relaxamento das regras e os defensores de um rápido retorno à ortodoxia.
Mas a urgência de financiar o enfrentamento às mudanças climáticas e reforma digital não pressagia um rápido retorno à austeridade.
Para alcançar essas duas prioridades, a Alemanha terá que ”gastar somas colossais nos próximos anos”, reconheceu Merkel recentemente.
“Durante os próximos dez anos, serão necessários entre 40 e 50 bilhões de investimentos públicos por ano ou entre 1% e 1,5% do PIB”, disse Marcel Fraztscher, presidente do Instituto de negócios de Berlim.
Para resolver a equação orçamentária, “devemos rever fundamentalmente o freio da dívida (e caminhar) em direção a uma norma nacional de acordo com o padrão europeu”, que tolera um déficit de 3% da riqueza gerada pelo país, disse Fratzscher à AFP.
Conquistar a maioria de dois terços
No entanto, esta alteração deverá ser aprovada por maioria de dois terços no Parlamento, o que parece ser uma “missão impossível na próxima legislatura”, acrescenta o especialista.
“Os partidos no poder terão que encontrar outros meios para contornar o freio da dívida”, diz Fratzscher.
Os equilíbrios dentro da futura coalizão, que pode ter três forças políticas, serão decisivos.
Como sempre, a CDU-CSU continua a se apresentar como avalista da ortodoxia orçamentária.
Mas, “será impossível parar a dívida novamente sem aumentos massivos de impostos”, uma ideia que os conservadores descartaram, responde o economista.
Bem posicionados para entrar para formar um futuro governo, os verdes querem remover o freio da dívida para permitir um forte aumento nos gastos públicos e investir cerca de 50 bilhões por ano até 2030.
Scholz, ministro da Fazenda desde 2018, também está disposto a aumentar os gastos públicos, mas dentro dos limites permitidos pelo marco constitucional. /AFP