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Bachelet, continuidade na política interna e desafios na externa

Por Agencia Estado
Atualização:

A presidente eleita do Chile, a socialista Michelle Bachelet, representa a continuidade na política interior de Ricardo Lagos, com algumas retificações, mas enfrenta um desafio nas relações com seus vizinhos sul-americanos. Os presidentes Hugo Chávez, na Venezuela; o eleito Evo Morales, na Bolívia, e a ascendente candidatura nacionalista de Ollanta Humala, no Peru - com eleições marcadas para 9 de abril - destacam-se no subcontinente com os brilhos de uma ideologia muito distinta da do socialismo chileno. Bachelet se encontra com um Chile transformado em um exemplo de estabilidade democrática e bonança comercial e financeira, obtida em parte graças aos muitos acordos de livre comércio que Ricardo Lagos assinou com países dos cinco continentes. O êxito também se deve à austeridade financeira e ao exercício de um agudo neoliberalismo que inclusive a agora presidente eleita criticou com moderação e prometeu polir nas arestas que causam graves problemas sociais. A comodidade com que o Chile se movimenta na globalização econômica e sua postura favorável à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta por Washington, transformam o Chile, governado pela Concertación em uma ilha cercada de países que, pelo menos, no caso de Brasil e Argentina, põem obstáculos aos EUA. O livre mercado, a aceitação das regras internacionais de comércio e das instituições financeiras internacionais, a globalização e o neoliberalismo não estão entre os demônios do socialismo chileno, ao contrário de Morales, Chávez e o candidato peruano aos quais os EUA incluem nas esquerdas, mas que os socialistas chilenos chamam de "populismos anti-sistema". O ex-presidente do Governo espanhol Felipe González se referiu a essa diferença quando viajou nesta semana ao Chile para apoiar a candidatura de Bachelet. "Eu me sinto próximo de uma expressão de esquerda como representada por Ricardo Lagos e Bachelet, e também a que representa Lula, no Brasil, mas não me sinto próximo ao que aparece como esquerda com Hugo Chávez", disse González. Com o Peru e com a Bolívia, Bachelet enfrentará também, em cada caso, uma delicada situação bilateral. A Bolívia reivindica que o Chile lhe devolva o acesso territorial ao Pacífico que perdeu na guerra de 1879, e o Peru aprovou uma lei interna que modifica unilateralmente a linha de demarcação das águas territoriais. Evo Morales reiterou que, até que se chegue a um acordo para recuperar "a condição marítima" da Bolívia, este país não venderá gás ao Chile, que vive uma grande dependência energética. Além da diferença de limites com o Peru, Bachelet se encontra com o problema de um ex-presidente peruano detido em Santiago. O ex-presidente Alberto Fujimori está detido desde 7 de novembro à espera que os tribunais resolvam sobre o pedido de extradição por parte do Peru. Bolívia e Peru, por diferentes canais, denunciaram o "armamentismo" chileno, depois das onerosas compras de fragatas, submarinos, aviões de combate e tanques que Santiago classifica como reposição de material obsoleto. Nas questões internas, o neoliberalismo do socialista Lagos, continuação da política de seus antecessores no Governo chileno, incluindo o regime de Augusto Pinochet, foi o motor da bonança econômica, mas também o causador de um desequilíbrio social que colocou o Chile no segundo posto do continente quanto a desigualdade e injustiça na distribuição da riqueza. Bachelet prometeu corrigir esse desequilíbrio, e para isso conta com a grande ajuda de um extraordinário superávit estrutural de US$ 4 bilhões. A futura presidente também conta com um presente inesperado que o Chile recebeu nos dois últimos anos: o crescimento explosivo da China, que compra todo o cobre que o Chile produz e mantém o peso chileno nas alturas e o dólar baixo. Os buracos negros do brilhante Chile que Bachelet prometeu atender são a educação, a saúde e a Previdência. Um original sistema sanitário vai incluindo pouco a pouco novas doenças no sistema público de saúde, mas a educação e as aposentadorias têm regra pior. O ditador Pinochet eliminou os prestigiosos liceus nacionais e entregou os colégios aos municípios, cujos prefeitos ele nomeava pessoalmente. A ajuda do Estado chega desde então em função da assistência escolar, por isso os colégios mais pobres recebem menos dinheiro que os das prefeituras mais ricas. Na educação superior, as universidades privadas são consideradas um dos maiores negócios do Chile, país no qual, por exemplo, existem mais faculdades de jornalismo que jornais e televisões e inclusive uma universidade - propriedade do Opus Dei - dá o título superior de dona de casa. Na Previdência, o sistema chileno é dominado pelas AFP, sociedades privadas que se destacam pelos grandes aportes que exigem, os grandes lucros que produzem e o pressentimento que suas pensões serão irrisórias. Na alma nacional chilena é onde se espera de Bachelet a maior mudança: a chegada ao poder de uma mulher que, além disso, se declara agnóstica, é um fato histórico em um país onde até o ano passado não existia o divórcio e no qual, até há pouco tempo, os filhos das mães solteiras ou as crianças não batizadas não eram aceitos em muitos colégios. Apesar da queda da influência da Igreja Católica no país, em parte explicado pelo esforço social das religiões protestantes e evangélicas nos bairros mais pobres, declarar-se agnóstico no Chile ainda é um atrevimento. Nos costumes, terá que ver, por exemplo, se Bachelet, como presidente, consegue fazer o que tinha proibido como ministra da Defesa: entrar com saias em uma embarcação de guerra.

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