Biden, Brasil e as diplomacias alternativas

Na falta de uma relação adequada com o governo dos EUA, outros atores podem assumir o papel de fazer essa ponte com a Casa Branca

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Por Roberto Abdenur
Atualização:

Joe Biden tem como uma de suas prioridades a luta contra as mudanças climáticas. Revertendo o que fez Trump, levará os EUA de volta ao Acordo de Paris e unirá forças com a União Europeia nas questões ambientais. Um dos objetivos será o apoio ao Brasil nos esforços pela preservação da Amazônia.

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Nesse cenário, o governo do Brasil enfrentará um dos maiores desafios de sua política externa. Terá de decidir se aceita uma oferta de apoio financeiro e toma as rédeas do processo – tal como ocorreu com o PPG-7 (Programa-Piloto para a Proteção das Florestas no Brasil), iniciativa de US$ 500 milhões e executada por 17 anos -, ou se prefere rejeitar o que Bolsonaro chama, equivocadamente, de “suborno”.

Biden não abrirá mão de movimentos direcionados à proteção da floresta e dos povos indígenas. Com a UE, nos colocará na posição de escolher entre uma oportunidade (a oferta de algo como US$ 20 bilhões) ou um confronto com parceiros estratégicos decisivos.

A Amazônia preservada é fundamental para a economia do País e do planeta. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Bolsonaro desde já prejudica a relação com o novo governo ao retardar o reconhecimento da vitória de Biden. É urgente que se abram canais de comunicação com as forças políticas e sociais do governo Biden. Na falta de uma diplomacia oficial adequada, cabem as “diplomacias alternativas”. Sugiro as seguintes:

1) Diplomacia parlamentar. Encontros entre parlamentares brasileiros e americanos têm ocorrido esporadicamente, mas urge a retomada de contatos em bases regulares, privilegiando o Partido Democrata, onde prevalece visão negativa de nosso presidente e de seu governo. O Senado criou um “Grupo Parlamentar Brasil-EUA”. Seriam oportunos diálogos, mesmo que virtuais, com os americanos.

2) Diplomacia empresarial. Criado em 2009, o “Fórum de CEOs” tem dado contribuição valiosa para a ampliação do comércio e dos fluxos de investimento entre os dois países, ao propiciar diálogo entre empresários e também entre ministros brasileiros e americanos.

3) Diplomacia militar. Os laços que ligam as Forças Armadas dos dois países foram revigorados com a designação do Brasil como “parceiro preferencial” da Otan. Foi criado também um “Diálogo da Indústria de Defesa”. Com isso, cresceu o espaço para maior aproximação entre os militares dos dois lados.

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4) Diplomacia dos governadores. Os governadores da Amazônia já formaram um grupo coeso para atuação no plano doméstico. Seria interessante fazer contatos com governadores americanos engajados em políticas de preservação, como a Califórnia. Governadores estão em posição privilegiada para atenuar as tensões que surgirão entre Washington e Brasília a propósito da Amazônia, dos povos indígenas e das mudanças climáticas.

5) Diplomacia da sociedade civil. O presidente considera as ONGs – todas elas, sem exceção – “um câncer a ser extirpado”. Essa postura está em contradição com a importância que as democracias ocidentais atribuem às vozes da sociedade civil, em especial no que diz respeito a questões ambientais, sociais e de direitos humanos. É importante que as ONGs brasileiras intensifiquem sua articulação com similares do exterior para melhor resistir aos ataques do governo.

6) Diplomacia do combate ao racismo. Assim como nos EUA, cresce fortemente no Brasil uma percepção mais clara dos males do racismo. Configura-se agora quadro propício ao diálogo entre movimentos e entidades empenhadas nessa luta. É desejável uma junção de forças na promoção dos direitos e anseios da população de origem africana nos dois países. Biden atribui alta prioridade ao combate ao racismo.

7) Diplomacia dos povos indígenas. Os habitantes das florestas estão sofrendo enormes perdas, materiais e em vidas, nas mãos de garimpeiros, grileiros, madeireiros e fazendeiros. A pandemia grassa em várias tribos e o presidente mal disfarça sua hostilidade aos índios. Felizmente já estão em contato a primeira deputada indígena brasileira e duas congressistas da população dita “native Americans” nos EUA. É urgente que lideranças indígenas procurem apoio no exterior, pois a própria sobrevivência de algumas tribos está em risco. 

O vice-presidente, Hamilton Mourão, justificou fala do presidente sobre usar 'pólvora' para defender a Amazônia. Foto: Gabriela Biló/Estadão

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8) Diplomacia de vice-presidentes. O General Mourão tem papel importante na condução de nosso relacionamento com a China, por sua posição como representante do lado brasileiro na Comissão de Alto Nível para o diálogo entre Brasília e Pequim. Exerce também função de grande relevância para as atuais circunstâncias, como presidente do Conselho da Amazônia – o que o situa como interlocutor privilegiado de lideranças políticas estrangeiras preocupadas com a floresta.

A trajetória da vice-presidente eleita, Kamala Harris, também deve ser desde logo acompanhada com atenção, pois ela tem boa chance de chegar à presidência no futuro. Seria desejável a abertura de um diálogo entre nosso vice e Kamala, que, a exemplo de Biden, já fez críticas enfáticas à política do governo brasileiro em relação à Amazônia. Dessa maneira se reproduziria com os EUA o que já ocorre em nossas relações com a China. Teríamos também com Washington uma via de comunicação de elevado nível a cargo de nosso vice. Seria o mesmo esquema aplicado ao relacionamento com nossos dois principais parceiros estratégicos.

*Foi embaixador do Brasil na China, nos Estados Unidos e na Alemanha 

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