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Brasil precisa parar desmatamento primeiro para ser remunerado depois, diz Carlos Nobre

Cientista brasileiro afirma que cobrança brasileira é incoerente e vai de encontro a política ambiental do governo Bolsonaro; 'criminoso ambiental existe sem risco de punição'

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Por Renato Vasconcelos
Atualização:

A compensação financeira ao Brasil pela preservação da Amazônia - tema central do discurso do presidente Jair Bolsonaro durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima - é possível, mas não seguindo a lógica do governo atual. É o que aponta o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, referência nos estudos sobre mudança climática no País.

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O professor afirma que iniciativas para remunerar países pela preservação de seus ecossistemas já existem, e podem ser acessadas pelo Brasil em breve. Durante a própria cúpula, foi lançado a coalizão LEAF, um fundo com investimentos de governos e empresas para remuneração de países tropicais pela preservação ambiental. No entanto, as verbas são liberadas de acordo com os resultados alcançados, e não o contrário.

"Tem uma incoerência (na cobrança do presidente). O que vem primeiro? Você me dá o dinheiro e eu reduzo o desmatamento? Ou eu reduzo o desmatamento e você me dá o dinheiro? A lógica por trás da compensação não é 'me pague que eu reduzo o desmatamento', é 'você reduza o desmatamento, demonstre que você tem capacidade e seriedade, que eu remunero", explicou.

Membro da tribo Kayapó caminha pela rodovia BR163, durante protesto contra o desmatamento ilegal, em Novo Progresso, no Pará. Foto: Carl De Souza / AFP 

Além disso, o professor explica que um passo fundamental para acessar os créditos de carbono provenientes da conservação é a comprovação segundo metodologias rigorosas e transparentes, que demonstrem que o projeto de combate e redução ao desmatamento nesses países está ocorrendo de forma global e eficiente.

"No caso do fundo que foi lançado, há US$ 1 bilhão disponível para países tropicais que reduzirem seriamente o desmatamento. E eu digo, seriamente. Não pode ser algo do tipo: 'o Amapá desmata pouco, mas o Amazonas está aumentando demais'. Tem de ser um um projeto que reduza o desmatamento na Amazônia."

Outros fatores além da comprovação do desmatamento em si podem contribuir para o acesso a esses recursos internacionais. Países que adotarem novos modelos de desenvolvimento sustentável, com espaço para a bioeconomia, ou se demonstrarem capazes de proteger as populações tradicionais das florestas tropicais, por exemplo, podem ser beneficiados no momento de repartição dos recursos, o que vai exigir um pensamento estratégico por parte do governo.

O interesse nos créditos ambientais demonstrado durante a cúpula, no entanto, não encontra sustentação na política ambiental do governo, que precisará mudar radicalmente, segundo Nobre. "Toda a política do Ministério do Meio Ambiente, nos últimos dois anos e quatro meses, que incluiu o caso da suspensão do Fundo Amazônia, estava inserida em uma lógica em que você pagaria ao desmatador para ele não desmatar. Essa lógica é totalmente ridícula", disse. E completou: "O discurso político que ouvimos era de incentivo ao crime ambiental. Fazia com que criminosos ambientais existissem completamente sem risco de punição. Por isso o desmatamento, a degradação e as queimadas explodiram."

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Metas são possíveis, mas exigem ação

Do discurso do presidente, Nobre avalia que o ponto mais relevante em relação aos anteriores foi a sinalização de que o Brasil pretende antecipar a meta de alcançar a neutralidade de carbono em 2050 - o compromisso anterior do País era de zerar as emissões em 2070. Para alcançar esse objetivo, porém, o professor alerta que será necessário agir em diversas frentes, incluindo possibilitando um amplo trabalho de agentes de campo - que vem sendo retirados na Amazônia com o esvaziamento de órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).

"É muito difícil chegar nesses números, porque não há ações enérgicas de campo. Quando olhamos para políticas lá atrás, em 2004 até 2012, que fizeram o desmatamento cair, ela não é uma política que acontece de um ano pra outro. Muito da efetividade daquela política foi o trabalho de inteligência da Polícia Federal atrás dos financiadores do crime. Isso não se faz de um dia pro outro", afirmou.

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Apesar do ceticismo com o caminho da política ambiental atual, o professor projeta um cenário em que seria possível alcançar a meta. "Se houvesse uma seriedade muito grande na fiscalização, no rigor da fiscalização, em acabar o crime ambiental, nós teríamos uma uma condição muito apropriada de chegar em 2030 com 50% menos emissões, e aí sim seria perfeitamente exequível o Brasil zerar o resto de suas emissões de carbono".

Chegando em 2030 com 50% de emissões de carbono a menos, para que a neutralidade fosse atingida em 20 anos, ainda seria necessária a transformação da matriz energética do País, bem como a modernização da agropecuária. "Esse passo já começou. Temos o setor das eólicas crescendo, a energia solar ainda atrás, mas com muito potencial, temos iniciativas como as da Embrapa para reduzir a zero o impacto de carbono na produção no campo... Essas soluções de ciência existem, mas nós temos que dar escala a elas. Isso ainda falta".