'Brasil se afastar da África é jogar trunfos no lixo', diz Carlos Lopes

Para economista, afastamento do Brasil do continente prejudica ambos os lados e visão de que China está ocupando a África é errada

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Foto do author Renato Vasconcelos
Por Renato Vasconcelos e Paulo Beraldo
Atualização:

Considerado um dos economistas com maior conhecimento sobre o continente de 1,3 bilhão de habitantes e 54 países, Carlos Lopes avalia que o afastamento do Brasil com nações africanas é ruim para os dois lados. "No futuro, a África vai ser um mercado imparável. O Brasil vai ficar de fora? Tinha trunfos e está jogando no lixo?", questiona o ex-chefe da Comissão Econômica das Nações Unidas para África, o braço político da ONU com sede em Adis Abeba, na Etiópia, equivalente a uma CEPAL africana.

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Na entrevista, Lopes, que foi diretor político do ex-secretário-geral Kofi Annan nas Nações Unidas e tem 30 anos de instituição, diz que é preciso africanizar a democracia e não democratizar a África. Exalta o papel de lideranças pragmáticas no continente e minimiza a influência da China na região. "Por que essa fixação quando na realidade isso acontece em todos os países do mundo?", diz.

O economista da Guiné Bissau, que foi representante da ONU no Brasil, diz que a crise do multilateralismo antecede a covid-19 e afirma que a situação está ligada a fatores demográficos, climáticos e tecnológicos. Confira abaixo a entrevista completa com Lopes, que é professor da Universidade de Cape Town, na África do Sul, e professor visitante da Sciences Po, de Paris. 

O economista Carlos Lopes, que foi representante da ONU no Brasil e chefiou aComissão Econômica das Nações Unidas para África Foto: Reprodução/Blog Africa Cheetah/Carlos Lopes

Como as relações entre África e China vão impactar a relação com outras regiões do globo?

Há uma certa presunção errada sobre o envolvimento da China na África. O volume, em termos de comércio, é muito importante, pois é o primeiro parceiro comercial do continente com um país, mas se considerarmos o bloco da União Europeia, ela é, de longe, o maior parceiro comercial. Se tomarmos os investimentos, tanto em estoque como novos investimentos, a China não ocupa os primeiros lugares.

Eles investem cerca de US$ 10 bilhões por ano no continente, o que é o mesmo valor que investem no Paquistão. Isso é importante dizer porque há uma espécie de visão de que os chineses estão a tomar conta da África, mas a China também ultrapassou os EUA como principal parceiro comercial da Europa. Eles serem o principal parceiro da África não é diferente do resto do mundo? Por que essa fixação quando na realidade isso acontece em todos os países do mundo?

Mas de onde vem essa percepção?

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Essa percepção vem de três fatores. O primeiro é o fato de que existe um estigma negativo por parte da África, e quando investidores estrangeiros estão na África, eles não falam muito disso para não prejudicar suas análises de risco. 

O segundo é que os chineses fazem muitas obras de infraestrutura, o que é muito visível - aeroporto, porto, estradas, linhas férreas - isso dá a impressão de que a China está onipresente em todo o continente. Mas isso é porque os outros países e instituições bancárias deixaram de ter o interesse de investir na infraestrutura da África, e isso é privilegiado pelos chineses.

O terceiro é que as empresas chinesas têm uma visão muito otimista sobre o futuro da África, e por isso se posicionam para ganhar concorrências nos países africanos. Para cada dólar investido por empresas chinesas na África, elas recuperam dois dólares em contratos que não são financiados pela China.

E a relação do Brasil com a África, que foi intensa no início do século e depois passou a arrefecer com os governos Dilma, Temer e Bolsonaro? 

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O Brasil estava muito presente em muitas dessas ideias estratégicas. O Brasil tinha conquistado um mercado considerável em construção civil. Era muito bem visto e muito bem quisto em matéria de logística, e era visto como exportador de determinados produtos de alto consumo na África. Depois tinha também a área da mineração, onde estava presente, fundamentalmente, a Petrobrás e a Vale.

A Petrobrás vendeu todo seu portfólio africano. A Vale tem vendido tudo o que pode da África. Com a retirada das mineradoras, veio em seguida a retirada da logística, porque muito disso era para ajudar as mineradoras. E depois o Brasil entrou na Operação Lava-Jato, destruindo toda sua capacidade com as construtoras. O resto é História.

Carlos Lopes (à esquerda), da Guiné Bissau, foi conselheiro do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan. Depois, representou a ONU no Brasil e foi chefe da Comissão Econômica para paraÁfrica Foto: Acervo Pessoal

O que cada um, Brasil e África, perdem com esse distanciamento?

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Os africanos perdem na geopolítica mundial porque havia uma aliança entre os países do Sul, a emergência de novos polos de crescimento do Sul que permitia maior espaço de manobra. Perde também o Brasil, porque fica mais dependente de menos mercados, sobretudo porque a África era um mercado em expansão para o Brasil.

A África é um grande mercado para o futuro. Mesmo países pequenos, como Áustria, Eslovênia e Malásia, têm uma política africana muito ativa porque contam que, no futuro, esse vai ser um mercado imparável. O Brasil vai ficar de fora? Tinha trunfos e está jogando no lixo?

O continente africano produziu grandes líderes mundiais em gerações passadas, como Nelson Mandela e Kofi Annan, para citar apenas dois dos casos mais destacados. Qual a característica desses líderes e qual a mensagem passada para a geração mais jovem?

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Tivemos a grande chance de ter esses tipos de figuras ícones no continente em um tempo mais recente. Tradicionalmente os africanos são muito orgulhosos dos "pais da independência", que lideraram as lutas por libertação, as independências dos países. Depois ficaram órfãos durante bastante tempo, porque houve períodos de grande convulsão política, golpes de Estado, e as pessoas acharam que não teriam mais líderes à altura das grandes transformações que haviam ambicionado.

Mais eis que, com o fim do apartheid aparece o Mandela e, mais ou menos na mesma altura, aparece o Kofi Annan, a nível mundial, chefiando a ONU. E deu uma certa esperança aos jovens, acho que essa foi a grande contribuição. Os grandes seguidores desses dois grandes líderes hoje são os jovens.

Por outro lado, na geração atual, alguns dos que eram apontados como principais líderes democráticos do continente, como Jacob Zuma, na África do Sul, e o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali, acabaram se envolvendo em polêmicas, como casos de corrupção no caso de Zuma, a crise humanitária em Tigré no caso etíope. O que faltou para essa geração ter expoentes tão relevantes em termos mundiais em relação a anterior?

Tivemos uma exceção com esses dois líderes (Mandela e Annan) em termos éticos. Mas acho que temos uma boa quantidade de líderes que são pragmaticamente bons. Ser pragmaticamente bom não significa que tudo é ético, mas são bons gestores e estão a transformar suas economias. Temos bons exemplos na Mauritânia, Marrocos, Benin, Namíbia… São muitos, em comparação com o que tínhamos 10 anos atrás. Temos que aceitar que não estamos tão bem do ponto de vista ético e moral como tivemos com figuras Mandela, mas que temos um grupo de líderes que estão com um certo dinamismo na área da transformação econômica e social.

Nelson Mandela no dia da eleição que o tornou presidente, em 1994 Foto: WALTER DHLADHLA/AFP

Na ONU, duas das principais figuras são africanas: Tedros Adhanom (Etiópia) na OMS e Ngozi Okonjo-Iweala (Nigéria) na OMC. Acredita que a projeção internacional terá impacto nos seus países de origem, talvez levando ambos a concorrer ao Executivo ou Legislativo?

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Ambos têm experiência ministerial em seus países. Eu conheço pessoalmente os dois, trabalhei com eles, inclusive, no caso da Ngozi, publiquei coisas conjuntamente com ela, e acho que são duas grandes lideranças africanas, não tenho a mínima dúvida. Mas eles também estão limitados pela crise de suas instituições. A estrutura que construímos desde a 2ª Guerra está ultrapassada e não conseguem dar resposta, como estão, à crise do multilateralismo.

Sozinhos (Adhanom e Iweala) não podem mudar essas organizações que são compostas por Estados. O que eu conto muito é com a capacidade deles de mobilização. E isso ambos têm. Tedros conseguiu reverter várias coisas negativas durante a pandemia, mas não tudo.

O senhor é crítico do fato de parte da África ter colocado o maior foco no desenvolvimento e não na aceleração industrial. Poderia explicar esse argumento?

Não sou contra o desenvolvimento, sou contra a tônica social que se deu aos debates do desenvolvimento: de luta contra a pobreza. Porque, no fundo, esses debates não nos permitem sair da estrutura econômica que temos e também não permite que a África debata os problemas sistêmicos que criaram essa pobreza. Todos os países que se desenvolveram tiveram, em um dado momento, uma revolução industrial, que é acompanhada por um aumento da produtividade das economias e de uma formalização dos intercâmbios econômicos.

Quando digo que os países africanos devem acelerar sua industrialização, é que industrialização e manufatura não são a mesma coisa. Industrializar é levar as transações econômicas para a Era Industrial das relações econômicas, ou seja, com formalismo, com níveis de produtividade medidos de forma diferente, com prestações e cadeias de valor.

Todos os países africanos têm que fazer isso, mas como estão atrasados em fazer essa industrialização acelerada, têm níveis de informalidade muito grande. E essa informalidade depois vem com a pobreza. Por exemplo: se a agricultura não se desenvolve por não estar atrelada a cadeias de valor, nós vamos continuar a ter uma agricultura de subsistência, portanto de pobreza.

Um dos maiores desafios dos produtores é conseguir levar os alimentos os consumidores nas cidades. Na foto, uma região comercial de Nairóbi, capital do Quênia. Foto: Khadija Farah/The New York Times

O que falta para os países africanos estabelecerem democracias sólidas e com capacidade de promover um desenvolvimento que vise o futuro?

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O principal problema com relação à política da África é a falta de respeito pela diversidade. Por causa da história dos próprios países, temos Estados muito centralizados, sistemas de decisão muito centralizados e a introdução do regime democrático e das eleições não foi acompanhada, na mesma medida, pelo respeito às minorias e diferenças de todos os tipos, principalmente étnicas, mas também de gênero e etc.

Temos também o problema do "winner takes all", ou seja, aquele que ganha as eleições têm automaticamente legitimidade para governar, mas achando que governar é satisfazer os desejos da maioria que votou neles, desprezando as minorias.

Não há essa cultura democrática do respeito à diferença. Isso é muito grave, cria muitas tensões e é também a razão pela qual há muita falta de integridade nos sistemas eleitorais.

Isso guarda relação com o conceito trabalhado pelo senhor de que é necessário "africanizar" a democracia e não democratizar a África?

Exatamente. Para podermos ter um conjunto de medidas que satisfaçam as necessidades da totalidade da população, precisamos adaptar esse modelo democrático que importamos do exterior, que foi uma democratização da África. Importamos os modelos institucionais, mas sem a cultura institucional que estava com eles, porque ela está longe da cultura africana. Por isso, precisamos adaptar esses modelos, por exemplo, para ter menos democracia competitiva e mais democracia consensual, porque só assim podemos respeitar as minorias. É isso que chamo de africanização da democracia.

A demografia no futuro colocará uma população muito jovem na África e em envelhecimento em boa parte do mundo. Que desafios e oportunidades esse cenário traz?

A maior oportunidade é o fato de que estamos em um período de grandes transições, e uma delas é tecnológica. Quando inovação e invenção entram na cadeia de produção e viram consumo, quanto mais avançada ela for, mais difícil se torna a absorção pelos mais velhos e mais fácil pelos mais novos. Onde estarão os "digital natives" do futuro? A desvantagem é que essa enorme parte da população mundial vai entrar no mercado de trabalho e, se não tiver os requisitos de formação para poder tirar vantagem da integração das cadeias de valor, ela vai ser um desastre, porque teríamos muita gente, do ponto de vista de idade, com características para fazer parte da transformação do mundo, mas sem formação. Seria o mesmo que criar uma massa de marginais.

Como o senhor avalia a atuação da ONU e suas agências, como a OMS, durante a pandemia? Responderam na velocidade e de forma suficiente para a crise que estamos vivendo?

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É evidente que precisamos de uma resposta global, e para isso precisamos utilizar os recursos globais disponíveis, com a OMS à frente da estrutura do sistema de saúde mundial. Mas o que tem acontecido na OMS nos últimos 10 ou 15 anos é uma manifestação da crise que mencionei. Ela tem sido reduzida em seus financiamentos de forma brutal. Como em uma situação que teremos mais pandemias. O primeiro contribuinte é os Estados Unidos. E o segundo é Bill Gates. A OMS não foi construída para ser mantida por filantropia.

Ela responde em função da pressão política e dos interesses das farmacêuticas. Não teve a independência necessária.

Hoje em dia fala-se muito que os países pobres vão receber a vacina pelo sistema Covax, que é uma filantropia disfarçada. É como dizer: “por favor, ofereçam vacinas aos pobres”. Nós só podemos debelar essa pandemia tratando todo mundo igual, e há essa possibilidade. 

Entidade tem 7 mil funcionários em 150 países Foto: WHO/P. Virot

Qual a solução? 

A solução seria uma determinação da OMS, que já foi interposta por Índia e África do Sul, para suspender as patentes e a propriedade intelectual por razões de saúde pública. Se 14 bilhões foram financiados e você sabe que é a cura para a doença, você não pode fazer negócio com isso. E sabendo que vai morrer gente. É preciso dar a fórmula aos países que têm capacidade de fazer vacinas e deixá-los produzir. Só a Índia pode fazer meio bilhão de vacinas.

O senhor mencionou que a estrutura internacional está em crise. Como as Nações Unidas e suas agências associadas vão sair da pandemia? As pessoas entenderão sua importância e a necessidade de reformas ou é mais provável um agravamento da crise?

A crise do multilateralismo terá que ficar pior para depois passar a melhorar. É preciso entrar um pouco mais no fosso para depois sair dele. A Grande Depressão obrigou que se resolvesse o problema do desequilíbrio das transações financeiras mundiais. Foi aí que houve a Conferência de Bretton Woods, de onde saiu uma estrutura nova, com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. 

Em 2007, na crise dos subprimes nos EUA, foi preciso convocar uma reunião especial para acabar com a crise. A solução foi a criação do G20. Estamos vivendo a maior crise econômica mundial desde a Grande Depressão, pior que a dos subprimes, então não é a altura de dizer que precisamos de alguma coisa nova?

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Quais são suas observações sobre o cenário internacional após mais de um ano de pandemia? Como ela afetou as relações e a integração entre os países?

A nossa crise do multilateralismo precede a pandemia. Era uma crise que já vinha sendo marcada por um conjunto de desenvolvimentos que estão diretamente relacionados com três grandes tendências: demográfica, climática e tecnológica.

No que diz respeito a demográfica, há um envelhecimento da população mundial, sobretudo nos países mais ricos do planeta, que torna impossível manter o Estado de providência e certas disposições de prestação social que estavam baseadas no número de contribuintes e número de recipientes. Portanto, esse modelo está caduco.

Não é possível manter o sistema de aposentadoria e as prestações sociais várias. Na área da saúde, o número de pessoas que se precisa tomar conta e o número de doenças é maior que no passado, e o número de contribuintes é hoje menor. Tínhamos essa tendência demográfica que alterou profundamente as relações nos países ricos.

Que consequências esse cenário trouxe? E qual o papel das outras tendências? 

Isso criou o populismo, criou fenômenos de medo da deslocalização da globalização, criou fenômenos de competição novos que não existiam dentro da sociedade. E uma certa erosão, por tudo isso, do regime democrático. Não é possível manter o sistema de representação política instituído pela democracia liberal na base das pressões que são novas e estão a aparecer.

A outra tendência é a climática. O planeta não pode mais continuar a viver sem grandes transições. A maior transição, porque é aquela que emite mais para a atmosfera, e que contribui mais para a deterioração ambiental, é a transição energética. E, portanto, essa transição energética tem consequências geopolíticas enormes porque os países que tinham importância por ter combustíveis fósseis deixam de ser importantes para o futuro. Daí porque os EUA não têm a mesma política que tinham para o Oriente Médio. Haverá uma vantagem comparativa para quem domina energias novas.

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Além disso, há a tendência tecnológica que está a mudar nossas vidas. A guerra dita comercial entre EUA e China não é uma guerra comercial, é uma guerra tecnológica para saber quem pode regular, no futuro, os sistemas de funcionamento das tecnologias que estão a se desenvolver mais rapidamente - 5G, inteligência artificial e etc.

A sede da ONU em Nova York. Foto: Paulo Beraldo/Estadão

Como esse jogo de forças desafia a ordem estabelecida? 

Todas essas mudanças escapam à estrutura que construímos ao longo do tempo, desde a Segunda Guerra. Portanto, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Conferência de Bretton Woods, as agências da ONU, o sistema multilateral de financiamento. Todos eles estão um pouco ultrapassados por essas três dinâmicas.

E isso tudo não pode ser reduzido à chegada de Donald Trump ao poder. Ele é apenas uma demonstração colateral do que estou a dizer. Claro que se há uma crise demográfica e as pessoas não conseguem mais manter o Estado de providência tal como era concedido, se as taxas não podem mais ser baseadas nos combustíveis fósseis, há um grupo de gente que vai perder e que luta, e a expressão dessa luta pode ser o populismo daqueles que apoiam o Trump. Ou pode ser a emergência de um Bolsonaro, de movimentos populistas na Turquia e na Rússia.

As pessoas pensam que a crise é política, por causa de haver o líder A, B ou C. Não. Eles são o resultado dessa crise que é das grandes tendências, de que o mundo está a mudar e nós não temos instrumentos capazes de acompanhar essa mudança, porque continuamos a utilizar os mesmos instrumentos que construímos depois da Segunda Guerra.