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Candidata conservadora da França adota retórica racista para roubar votos da extrema direita

Valérie Pécresse usou a expressão 'grande substituição' em um discurso pontuado por ataques codificados a imigrantes e muçulmanos

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Por Redação
Atualização:

PARIS – Até alguns anos atrás, a “grande substituição” – uma teoria da conspiração racista de que as populações cristãs brancas estão sendo intencionalmente substituídas por imigrantes não brancos – era tão tóxica na França que nem mesmo Marine Le Pen, líder de longa data da extrema direita, recusou-se a usá-la explicitamente. 

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Mas em uma corrida presidencial que ampliou os limites da aceitabilidade política na França, Valérie Pécresse, candidata do partido de centro-direita nas próximas eleições, usou a frase no fim de semana em um discurso pontuado por ataques codificados contra imigrantes e muçulmanos.

O uso do slogan - no que foi interpretado como o discurso mais importante até agora por Pécresse, uma das principais rivais do presidente Emmanuel Macron - alimentou intensas críticas tanto de seus oponentes quanto de aliados dentro de seu partido. Também destacou a inclinação à direita na França, especialmente entre os eleitores de classe média, e a influência esmagadora de ideias e candidatos de direita nesta campanha, segundo especialistas políticos.

A candidata dos republicanos à presidência da França, Valérie Pécresse, discursa para apoiadores em Paris, em 15 de fevereiro Foto: Eric Piermont/AFP

A “grande substituição”, uma teoria da conspiração adotada por muitos supremacistas brancos em todo o mundo, inspirou assassinatos em massa nos Estados Unidos e na Nova Zelândia.

Éric Zemmour, um escritor de extrema direita, comentarista de televisão e agora candidato presidencial, foi a principal figura a popularizar o conceito na França na última década – descrevendo-o como uma ameaça civilizacional contra o país e o restante da Europa.

Em um discurso de 75 minutos diante de 7 mil apoiadores em Paris, a candidata de 54 anos adotou os temas de Zemmour, dizendo que a eleição determinaria se a França é uma “nação unida ou uma nação dividida”. O discurso tinha o objetivo de apresentar Pécresse, a atual líder da região de Paris e ex-ministra nacional do orçamento, aos eleitores de todo o país.

Ela disse que a França não está condenada à “grande substituição” e pediu a seus apoiadores “que se levantem”. No mesmo discurso, ela fez uma distinção entre “francês do coração” e “francês dos papéis” – expressão usada pela extrema direita para apontar cidadãos naturalizados. Prometendo não deixar a França ser subjugada, ela se referiuao símbolo da França: “Marianne não é uma mulher com véu” – referindo-se ao véu muçulmano.

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“Ao usar a 'grande substituição', ela deu legitimidade e colocou as ideias da extrema direita no centro do debate da corrida presidencial”, disse Philippe Corcuff, especialista em extrema direita que leciona no Instituto de Estudos Políticos em Lyon. “Quando ela fala de ‘francês dos papéis’, ela está dizendo que serão feitas distinções entre os franceses de acordo com critérios étnicos. Sua estigmatização do véu muçulmano está na mesma lógica da extrema direita.”

O uso de um termo antes limitado à extrema direita por Pécresse – que é candidata dos Republicanos, partido dos ex-presidentes Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac – incomodou pessoas dentro de sua própria legenda, que ainda querem traçar linhas claras entre ela e a extrema direita. Xavier Bertrand, um peso-pesado do partido, disse: “'A grande substituição', isso não nos representa”, segundo a mídia francesa.

As pesquisas mostram Pécresse, Le Pen e Zemmour empatados pelo segundo lugar atrás de Macron no primeiro turno, marcado para 10 de abril. Um deles enfrentaria Macron, que também deslocou-se para a direita, especialmente nos últimos dois anos de sua presidência, no segundo turno, em 24 de abril.

A ascensão repentina de Zemmour como candidato injetou a “grande substituição” e outras questões explosivas na corrida, forçando outros candidatos da direita a ajustar suas posições sob o risco de perder apoio.

Le Pen rejeitou expressamente o slogan, criticando-o como uma teoria da conspiração. Mas embora ela tenha mantido distância da expressão, o presidente de seu partido, Jordan Bardella, começou a se referir à ela nos últimos meses.

Enfrentando críticas, Pécresse recuou um pouco, dizendo que seu uso da expressão foi mal interpretado. 

Mas Nicolas Lebourg, um cientista político especializado em direita e extrema direita, disse que seu uso do termo simplesmente reflete um cálculo político: os apoiadores tradicionais da classe média de centro-direita também mudaram para a direita nos últimos anos.

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"Desde 2010, houve um endurecimento significativo dos eleitores da classe média alta contra a imigração e o islamismo, mas ainda não vimos seus efeitos políticos", disse Lebourg. “Então, o que estamos experimentando agora é uma virada de parte da classe média e da classe média alta.”

'Pária'

Esses eleitores estão preocupados com uma suposta contaminação da França pelo "despertar" de ideias americanas politicamente corretas sobre justiça social que eles consideram um exagero. "São os eleitores da classe média que se preocupam com isso, enquanto os apoiadores da classe trabalhadora de Le Pen não estão completamente interessados ​​nesse assunto", disse Lebourg.

A "grande substituição" foi evocada por um escritor francês chamado Renaud Camus em 2010. Em uma entrevista em 2019, Camus lamentou o fato de que os principais políticos haviam rejeitado o slogan. O slogan e sua adesão à extrema direita o transformaram em um pária nos círculos literários e midiáticos da França, forçando-o a publicar seus próprios livros.

Mas nos últimos meses, Camus foi convidado a voltar a participar de programas de entrevistas na televisão.

Em uma troca de e-mails com o New York Times na terça-feira, ele disse: “Só posso ficar encantado com o uso da expressão ‘grande substituição’ durante esta campanha presidencial”. Outras questões da campanha, como a pandemia e o poder de compra do consumidor, foram menores diante da realidade descrita pelo slogan, disse. "O restante não tem importância, em comparação", disse ele. 

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