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''Candidatos virtuais'' enfraquecem democracia

Por Hugo Quiroga e CLARÍN
Atualização:

Com a desagregação do regime de partidos, a personalização da política e a volatilidade eleitoral, vem surgindo nitidamente um sistema no qual, a partir das eleições de 2003, a relação dos cidadãos com a política limita-se ao ato de votar. Nesse momento crucial na Argentina, as urnas foram o âmbito onde os cidadãos demonstraram que as eleições não só são um método para nomear representantes, mas podem ser também um dispositivo eficaz para responder a uma crise profunda, como a vivida desde dezembro de 2001. O voto democrático assume um caráter simbólico acima da nomeação dos governantes, pois não está dissociado do universo de representação dos cidadãos e porque toda eleição implica um ato de confiança entre eleitores e eleitos - que embora não encerre um mandato imperativo, permite estabelecer um diálogo implícito ou explícito entre governantes e governados na esfera pública, por meio das promessas eleitorais, a ação de governo e as cobranças pelo cumprimento das promessas A arbitrariedade empurrou a realidade política a se situar nessa cena e incorporar às instituições uma categoria incomum denominada "candidaturas virtuais" - destinadas a converter vigor eleitoral em poder político - e promoveu o abandono da responsabilidade de governar enquanto ainda não expirou o mandato dos eleitos para funções executivas ou legislativas. Esquece-se que as urnas traçam o destino da coletividade, mas são os mandatos que tornam efetiva a responsabilidade pública assumida ante o voto de confiança dos cidadãos. Um comportamento eticamente censurável, mas não ilegal (embora na Argentina esses limites sejam difusos), instalou surpreendentemente a política do "como se". Fomenta-se a falsificação de candidatos que cumprem tarefas executivas para participar de listas eleitorais legislativas, com o único fim de conservar um poder que se sabe diluído. O simulacro eleitoral consiste na aparência de participar de um processo eleitoral sem fazê-lo na realidade, pois não existe a intenção desses candidatos de ocupar a vaga conquistada. Não cabe dúvida: com essa atitude, a democracia torna-se mais frágil. Ela é esvaziada de um aspecto fundamental de seu conteúdo quando se desvanece o interesse público e fica condenada ao particularismo dos partidos pessoais. A democracia fica sujeita ao frio domínio do pragmatismo político, quando muitos eleitores votarão em pessoas - populares e carismáticas - "como se" fossem candidatos reais. O maior capital político da sociedade argentina é ter conseguido organizar uma comunidade eleitoral previsivelmente durável. Os últimos 26 anos de democracia dão testemunho disso. Votar não é um fato irrelevante na Argentina quando se leva em conta a longa história de descontinuidade institucional. Assim como houve uma eleição fundamental em 1983 que pôs fim à ordem autoritária, houve também um ato eleitoral substancial para a vida democrática do país por suas consequências políticas. Mas não se trata unicamente de votar, e sim de organizar melhor o espaço público e o poder democrático, que é um poder disseminado na sociedade. Os líderes e os cidadãos têm a obrigação de preservar este capital político acumulado pelo esforço de uma sociedade inteira que apostou na convivência pacífica, livre, solidária e razoável. O problema é que os cidadãos delegam o poder e a responsabilidade a seus representantes, mas não retêm a responsabilidade de controlar as medidas públicas. Os líderes, por sua vez, aferram-se ao universo do poder delegado que recebem, e convertem sua liderança representativa em liderança deliberante. Com a crise dos partidos e a diluição das identidades políticas de massa, o voto transformou-se no meio que representa (ainda que simbolicamente) a participação mais orgânica e institucionalizada dos cidadãos, sem deixar de reconhecer os caminhos menos convencionais por meio dos quais transita igualmente a política: as ruas e os movimentos informais. As candidaturas virtuais e os mandatos inconclusos prejudicam a relação entre a sociedade e o poder legítimo, que na atual configuração política se expressa principalmente por meio do voto democrático. O que está em jogo é o caráter da comunidade eleitoral que se assenta num ato de confiança e na crença dos cidadãos num sistema de eleições competitivas e transparentes. *Hugo Quiroga é cientista político da Universidade Nacional de Rosário

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