Carnaval de Veneza é marcado pela frustração em meio à pandemia

Sem turistas, artesãos acumulam as máscaras venezianas; programação online recupera a história, mas não garante clima de folia

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Por Ilana Cardial
Atualização:

Pela primeira vez em 30 anos as ruas de Veneza ficaram em silêncio durante seu tradicional carnaval. Da última vez em que isso ocorreu, em 1991, os vestidos de época e as máscaras de papel machê sumiram das calçadas da cidade italiana por causa da Guerra do Golfo. Desta vez, foi a pandemia de coronavírus que esvaziou Veneza.

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Com pontos turísticos vazios, as autoridades tentam manter o espírito da tradição com uma programação online, enquanto parte da população reforça que o carnaval deve ser vivido presencial e coletivamente. Sem os milhões de compradores estrangeiros, artesãos acumulam máscaras em suas lojas. De maneiras distintas, a frustração marca esta edição.

Sob o tema "Tradicional, emocional e digital", o Carnaval de Veneza 2021 contou com transmissões ao vivo e publicação de vídeos sobre a história das tradições, entre os dias 6 e 16 de fevereiro. As gravações ocorrem no Palácio Ca’ Vendramin Calergi, a "caixa mágica" à beira do Grande Canal, como diz o mestre de cerimônias Maurizio Agosti. "A diferença frustrante deste ano é que não podemos nos encontrar e trocar pessoalmente, mas pensamos que, dada a situação, poderíamos ao menos mostrar o carnaval", diz o artista que trabalha há 27 anos na produção do evento.

A cada ano, uma jovem é escolhida para fazer o Voo do Anjo. Em 2020, foi a vez de Linda Pani. Foto: Ana Laura M. Carciofi/@fotografabrasileiraemveneza

O carnaval online começou a ser planejado em novembro de 2020. Cerca de 20 pessoas, entre produtores, dançarinos e apresentadores, que em anos anteriores fizeram o espetáculo na Praça de São Marcos (principal ponto turístico de Veneza), agora estão no palácio. “Todo mundo que está participando deste carnaval tem uma paixão. (...) Nós dizemos que não podemos parar, não podemos deixar tudo no escuro. Precisamos mostrar algo, então decidimos fazer online”, afirma Agosti, que acredita ser essa uma forma de salvar um pouco da história. “Eu ainda estou feliz e satisfeito, faço com todo o meu coração e aproveito de algum modo, mas claro que quero que façamos o verdadeiro carnaval no ano que vem.”

Instituído em 1094 (mesmo ano da consagração da Basílica de São Marcos), o carnaval veneziano teve uma série de interrupções ao longo da história. A última durou dois séculos. Com a chegada de Napoleão, em 1797, o carnaval veneziano ficou proibido. Foi somente em 1979, quase dois séculos depois, que o carnaval voltou com a benção do governo.

Normalmente, cerca de 3 milhões de turistas passeiam pelas ruas estreitas de Veneza durante o carnaval. Ana Laura Mattar Carciofi, de 38 anos, se assustou na primeira vez que foi à festa, em 2018. “É muito cheio, você não consegue nem andar”, relembra a paulista, moradora de Pádua desde 2017. A região do Vêneto, onde ficam as cidades de Veneza e Pádua, encontra-se na zona amarela da pandemia – o que permite que os moradores circulem apenas dentro da própria região.

Ana Laura Mattar Carciofi participa do carnaval de Veneza desde 2018, mas prefere ficar por trás das câmeras. Foto: Foto: Aymara Lima

No primeiro sábado de carnaval deste ano, Ana Laura foi à Veneza. Como ocorre desde o início da pandemia, a Praça de São Marcos estava vazia. “Dá saudades de como realmente é. Fica muito diferente, dá uma tristeza”. Ela até tentou assistir à programação online, mas achou “muito chatinho”. “Não deu para matar as saudades. Eu gosto de estar ali, no meio das pessoas, na agitação. A fritella em uma mão e o Aperol Spritz (drink italiano) na outra!”. A fritella é um doce frito e recheado, preparação típica do feriado. 

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Para a brasileira, este é o “carnaval dos venezianos”, ainda que sejam poucos. “A população está ocupando os espaços que, muitas vezes, não consegue com os turistas. Estão aproveitando mais a cidade e não deixaram o carnaval morrer”. Ainda assim, como fotógrafa, Ana Laura também foi afetada pela falta dos visitantes. “Faz tempo que eu não fotografo. O comércio, em geral, está sofrendo muito.”

A loja Tragicomica existe desde os anos 1980. Sem o carnaval deste ano, o artesão Gualtiero Dall'Osto acumula máscaras. Foto: Tragicomica Venezia

O pesadelo dos 'mascareri'

O carnaval de Veneza tem raízes seculares e é um grande espetáculo a céu aberto. Moradores e turistas vestem fantasias elegantes e sofisticadas, que relembram o século XVIII, e desfilam enquanto observam e são vistos. O dia anterior à quaresma é oficialmente feriado deste 1269. Ainda em uma época de nobreza, os foliões cobriam os rostos para se divertir sem serem reconhecidos. É deste fato que surgem as máscaras artesanais, principal característica do carnaval veneziano.

Na Tragicomica, uma das lojas mais tradicionais e antigas no ramo, as máscaras não veem clientes há quase um ano. São milhares espalhadas pelas mesas, paredes, teto e até no chão. Aos 61 anos, Gualtiero Dall’Osto é proprietário da Tragicômica. Hoje, é um dos mascareri, artesãos que produzem as máscaras, que sofrem pela falta do turismo. “Acredito que, como categoria, fomos os mais prejudicados vivendo no centro histórico. Perdemos 100% das vendas ou muito perto disso”, diz Dall’Osto.

No carnaval 2020, assim como nos anteriores, as roupas do século XVIII estão entre as tradições. Foto: Ana Laura M. Carciofi/@fotografabrasileiraemveneza

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Veneza passou por uma sucessão de eventos nos últimos meses. A cidade foi alagada em novembro de 2019 e, quando estava se recuperando, veio a pandemia e interrompeu o carnaval de 2020. Em dezembro, as águas subiram novamente e, agora, não há carnaval. “É este pesadelo que dura até hoje, em resumo”.

Para Dall’Osto, a ideia de um carnaval digital, proposta pela administração da cidade, deturpa a própria essência e natureza da comemoração. “O carnaval é uma festa que se vive junto, em turmas, dançando, comendo, transgredindo, experimentando. É sobre vestir as máscaras para vestir também uma nova identidade”, diz o artesão, que produz as peças há mais de 40 anos, uma a uma, todas feitas à mão, “Tudo isso, com os limites impostos pelos regulamentos sanitários, não é possível”.

Artesão há mais de 40 anos, Gualtiero Dall'Osto critica o carnaval digital. Foto: Tragicomica Venezia

Desta edição, o que agradou Dall’Osto foi o pouco que viu pelas ruas, não pelas telas. Pequenos espetáculos de duas ou três pessoas ocorreram em locais na cidade. Partindo de um personagem histórico da Commedia dell’Arte, Dall’Osto transformou o Coviello em Covid-viello e criou uma peça única para este ano. Na encenação, Covid-viello é perseguido pelo Médico da Peste, outro personagem tradicional do carnaval veneziano, inspirado nos trajes usados durante a peste negra.

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O amor pela arte é compartilhado com Sergio Boldrin, também artesão de máscaras. Nascido em 1957, Boldrin gere a La bottega dei Mascareri. “Sem dúvidas é o período mais sombrio durante os meus quase 40 anos de atividade, mas o amor por essa antiga arte ainda vive e continuo a projetar novas máscaras”, diz. Em sua loja, o rendimento caiu em ao menos 80%. “A nossa esperança para o próximo ano é voltar a trabalhar e sair dessa pandemia. As máscaras que desejo ver em volta são apenas as de papel machê”.

Para o futuro de Veneza, os mascareri esperam uma transformação no turismo, que valorize as tradições e cultura local. Mesmo antes da pandemia, artesãos sofriam com a aquisição de máscaras de plástico provenientes da China. “Precisamos recuperar o carnaval verdadeiro de Veneza, que é feito de participação e que, durante todo aquele período, se torna um grande teatro para todos”, afirma Dall’Osto. “Essa cidade está destinada a se tornar uma espécie de parque de diversões, que se abre pela manhã e se fecha à noite para os turistas. Veneza precisa ser habitada por atividades, pessoas que amam viver nessa dimensão e nessa tranquilidade do tempo”.

As tradições que não cabem na tela

Como toda a programação deste carnaval é transmitida do Palácio Ca’ Vendramin Calergi, diversas tradições ficam de fora. Os vídeos concentram-se em contar a história por trás da folia, mas nenhum evento público foi realizado. O Ballo del Doge, baile de máscaras mais luxuoso da cidade, foi cancelado. Assim como o Voo do Anjo, tradição que abre oficialmente as comemorações do carnaval.

Anualmente, jovens mulheres da província de Veneza são selecionadas para serem as 12 Marias. “Não é um concurso de beleza, mas sim uma reencenação histórica, na qual as garotas precisam ter várias características, como o conhecimento das tradições”, diz Mara Stefanuto, de 24 anos. Mara é uma das 12 Marias do carnaval de 2020, interrompido pela pandemia. Neste ano, a tradição das Marias terá continuidade e uma delas será selecionada para ser a Maria do ano. 

"Do alto da torre do sino, na Praça de São Marcos, a Maria do ano sobrevoa toda a multidão. Esse é o Voo do Anjo, o que mais amo no carnaval de Veneza", conta Mara, que aguarda o resultado deste ano. "Para mim, seria um sonho se tornando realidade e representar uma das cidades mais bonitas do mundo seria uma honra".

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