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Carta de Evo ameaça o maior pólo agroindustrial da Bolívia

Fazendas em Santa Cruz, mesmo produtivas, podem ser desapropriadas se superarem área a ser definida em referendo

Por Ruth Costas
Atualização:

Nas terras férteis do oriente do país, o governo boliviano abriu uma frente de batalha que já paralisou os investimentos e ameaça sufocar um dos setores mais dinâmicos da economia da Bolívia. O alvo do presidente Evo Morales são os produtores da região de Santa Cruz, o maior pólo agroindustrial do país e o principal reduto da oposição regional. "Esse será o fim do latifúndio na Bolívia", proclamou Evo há um ano, quando o Congresso aprovou uma nova lei de terras, festejada como uma "revolução agrária" pelas organizações sociais afins ao presidente. Agora, é o projeto para uma nova Constituição que está tirando o sono dos agropecuaristas - entre eles, muitos brasileiros. Dentro de alguns meses, os bolivianos irão às urnas para decidir sobre o Artigo 398 dessa nova Carta, que limita o tamanho das propriedades rurais. Será a primeira da maratona de consultas populares previstas para o próximo ano na Bolívia. A pergunta que eles terão de responder não será se esse limite deve existir ou não. Simplesmente, em que patamar ele deve ser colocado - 5 mil ou 10 mil hectares. As propriedades que excederem essas dimensões serão consideradas latifúndios. Como tal, estarão sujeitas à desapropriação. Sejam elas produtivas ou não. "No caso do limite mais estreito, os 5 mil, se essa regra for aprovada, inviabilizará cerca de 80% das fazendas de pecuária do país", disse ao Estado Maurício Roca, presidente da Câmara Agropecuária do Oriente (CAO). "Também estaríamos abrindo um precedente perigoso ao permitir que o Estado possa definir o que os indivíduos podem ter ou não." Segundo o presidente da Comissão de Recursos Naturais e Terra da Assembléia Constituinte boliviana, Carlos Romero, que pertence ao partido governista Movimento ao Socialismo (MAS), cerca de 4 mil famílias perderiam terras se o limite mais estreito fosse aprovado. Se passassem os 10 mil, ele diz que seriam apenas 20 famílias. "O problema é que todas são propriedades altamente produtivas e modernas, que contribuem para as exportações e a segurança alimentar da Bolívia", defende Roca. Entre os produtores, o sentimento é de surpresa e indignação. Muitos não conseguem entender como, num piscar de olhos, uma terra repleta de oportunidades se tornou um azarão. Há três anos, a área cultivada em Santa Cruz crescia a uma média de 7 a 10%. As fazendas se mecanizavam. Os produtores contratavam gente, investiam em novas tecnologias e estavam sempre de olho nas terras mais além da sua porteira: o objetivo era crescer e aumentar a produção. Hoje, os investimentos estão praticamente estancados. Se há um mínimo de crescimento, é por conta dos altos preços dos alimentos no mercado internacional. Os tratores estão parados por falta de diesel - distribuído pela estatal YPFB. Os bancos se negam a dar empréstimos tomando as terras como garantia e muitos trabalhadores estão com o emprego por um fio. Quem queria crescer se dá conta de que ser grande virou infração. "O governo boliviano está usando a terra para fazer política enquanto diz estar preocupado com um problema social", diz o brasileiro naturalizado boliviano Nilson Medina, que teme pelos 7 mil hectares onde planta principalmente soja nas proximidades da cidade de Santa Cruz de La Sierra. Ele faz parte de uma das 200 famílias brasileiras que se dedicam à agricultura na Bolívia. Muitas outras se dedicam à pecuária. No total, os brasileiros são responsáveis por um terço da produção de soja e detêm mais de 10% das terras cultivadas do país. "A verdadeira ?revolução agrária? foi feita por nós, produtores, que investimos para transformar o campo boliviano num setor competitivo e mecanizado", diz Medina. "Agora Evo quer acabar com tudo isso para retroceder ao modelo de agricultura comunitária, típico das comunidades indígenas." MECANISMO DE PRESSÃO A lei de terras é hoje o principal mecanismo de pressão de La Paz sobre os produtores de Santa Cruz. Aprovada em novembro de 2006, com o Senado cercado por movimentos sociais que impediam a entrada dos parlamentares opositores, ela tem como objetivo, segundo Evo, permitir a redistribuição de 20% das terras bolivianas até 2010. Para o governo, esse dispositivo legal é um instrumento de promoção da justiça social no campo. Também é uma oportunidade para distribuir milhares de hectares que estão ociosos nas mãos do Estado. Para a oposição, é uma declaração de guerra. "Também somos contra o latifúndio improdutivo, mas eles estão de olho nas terras que já estão sendo trabalhadas aqui no Oriente", diz o presidente da Associação Nacional de Produtores de Oleaginosas (Anapo), Reynaldo Díaz, para quem a meta não-declarada do governo é debilitar a oposição regional de Santa Cruz e garantir sua popularidade entre os indígenas e grupos de camponeses. Pela lei, toda terra que não cumprir sua "função social" está sujeita à desapropriação. A antiga lei de reforma agrária, de 1996, já impunha essa condição. A diferença é que a nova legislação exclui como "função social" os investimentos produtivos e melhorias feitas na propriedade. "Ou seja, não adianta produzir e gerar emprego", afirma Díaz. "Você corre o risco de ter suas terras tomadas e perder tudo que investiu". A desapropriação das terras pode ocorrer no caso de qualquer contenda trabalhista ou do não cumprimento das regras sobre o uso ou manejo do solo. Na prática, se um produtor desmata mais do que o permitido, não registra alguns de seus trabalhadores ou cultiva soja num lugar que a superintendência agrária diz que deve ser usado para a pecuária, pode ter suas terras desapropriadas. "A legislação não nos dá nem mesmo a chance para que nos adaptemos", disse ao Estado um grande produtor de soja brasileiro, que não quis ser identificado por medo de represália. Segundo o governo, tais condições visam a conter os abusos dos produtores no campo - como agressões ao meio ambiente e o uso do trabalho escravo. Ele lembra que diversas ONGs e movimentos sociais denunciaram a existência de famílias de origem guarani trabalhando em regimes semi-servis nas regiões de Santa Cruz, Tarija e Chuquisaca, mas os proprietários negam que haja esse tipo de violação. Este mês, foi emitida uma resolução para a expropriação de cinco propriedades com base na lei de terras no Departamento de Chuquisaca, no sul do país. Uma delas seria desapropriada por causa de uma dívida trabalhista de 3.800 bolivianos (cerca de R$ 1 mil). SENTIMENTO ANTIBRASILEIRO Para os estrangeiros, a tensão no campo cria uma situação ainda mais complicada. Um brasileiro que tem duas fazendas dedicadas à pecuária em Santa Cruz diz sentir um crescimento rápido do sentimento antibrasileiro entre funcionários do governo e organizações sociais aliadas a La Paz. "Eles dizem: ?você nem sequer está no seu país, não pode reclamar.?" Maurício Roca, da CAO, acrescenta que muitos proprietários não-bolivianos também são vítimas de extorsão. "Por enquanto, o governo ainda não se atreveu a desapropriar muitas terras em Santa Cruz porque sabe que isso provocaria uma resposta forte e imediata", diz ele. A maior parte dos milhares de hectares que Evo está distribuindo para camponeses e comunidades indígenas é, até agora, do Estado. "É provável, porém, que, à medida que as hostilidades entre Santa Cruz e La Paz aumentem, haja uma ofensiva sobre as terras daqui. Aí sim teremos uma situação potencialmente explosiva."

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