Chacina à latino-americana

Chacinas, por razões evidentes, estilhaçam a fé e zombam da razão. Mas há uma pergunta que me acompanha sempre que estoura mais uma. Como é que os Estados Unidos têm tantas? Como um país que tem tanto se presta a tamanha miséria? Poderoso e com uma queda para o espetáculo cinematográfico. O assassino em série bem que poderia ser o grande símbolo atual da América contemporânea. Exagero? Afinal, dificilmente passa um mês sem que um tresloucado junte mais um arsenal do diabo, invariavelmente encomendado pela internet, vista o boné e o colete de Kevlar, como manda o script, e parta para a escola. Em minutos, o cenário de humilhações da sua infância vira palco da vingança saneadora da alma, ato fechado por um suicídio. Inicia-se outra rodada de luto e revolta nacional, ao toque de sirenes e sermões antiarmamentistas. Claro, nenhum país detém o monopólio das chacinas. Em 2011, um atirador matou 12 crianças na escola onde estudou, em Realengo, no Rio, e um jovem com metralhadora disparou contra o público de um cinema no Morumbi, em 1999. No entanto, esses atos impressionam menos como delitos originais do que plágios da letalidade à americana, potencializada por um mundo globalizado. Connecticut, Colorado, uma base militar no Estado do Texas. Não importa o endereço nem quão protegido possam parecer. O chacinador suicida sempre acha sua brecha. Mas por que só (ou quase só) ocorre nos EUA? Uma das respostas mais frequentes é a suposta banalização das armas. Que mais esperar de um país em que se pode adquirir ferramentas letais com o dedilhar do teclado e um cartão de crédito? James Holmes, que estreou seu próprio filme num cinema do Colorado, precisou de apenas um laptop e US$3 mil para juntar seu paiol. Hoje, o Congresso e a sociedade americana pregam o fim do bazar livre das armas. No entanto, a reza óbvia pode ser enganadora. Considere o novo relatório sobre violência no mundo, elaborada pela ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal. Nele, há o novo ranking das 50 cidades mais violentas do mundo. As dez piores metrópoles são da América Latina. Honras para San Pedro Sula, segunda cidade de Honduras, com 169 homicídios por cada 100 mil habitantes. Em seguida, vêm Acapulco, no México (143 por 100 mil) e Caracas (118). O Brasil amarga 14 capitais na lista vermelha, liderada por Maceió, com quase 86 assassinatos por 100 mil habitantes. Os EUA tampouco escapam. Das seis cidades americanas na lista das mais perigosas incluem-se Detroit (17.º lugar), New Orleans (21.º), San Juan (33.º), Saint-Louis (40.º) Baltimore (41.º) e Oakland (43.º). Causas. No entanto, é a América Latina, com 41 das piores 50, que mais chama atenção. Entre as razões da violência, há algumas bem familiares. Drogas, gangues e impunidade. A grande ausente da lista: a proliferação das armas de mão. A posse e o porte de armas e seu uso "não são a causa da violência", afirma a pesquisa. Um exemplo é o México, país convulsionado por narcotraficantes, que amarga 60 mil mortos nos últimos seis anos, mas onde o porte particular de armas está vetado e sua posse, severamente controlada. Já a sangrenta Venezuela ocupa o modesto 27.º lugar mundial em posse particular de armas de fogo, segundo o site Gunpolicy.org Mais surpreendente, concluem os autores do estudo: "Em países com menos restrições às armas há muito menos violência que outros onde prevalecem proibições e restrições." A principio, soa música para os ouvidos dos ultraconservadores americanos, que se opõem a controles maiores sobre o comércio e porte de armamento. É direto da cartilha do Partido Republicano a ideia da ONG mexicana de que "o desarmamento não detém os delinquentes violentos que sempre têm sua forma de obter armas". Muito mais relevante é a já clássica reclamação latino-americana. Polícia atrapalhada. Bandido que usa uniforme. Tribunal que não pune. No México, em Honduras e na Venezuela - campeões da barbárie -, 90% dos casos de homicídios nem sequer chegam aos tribunais. Sem policiar a polícia, fortalecer a Justiça e castigar o bandido, retirar armas é tiro de festim.

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Por Mac Margolis
Atualização:

* Mac Margolis é colunista do 'Estado', correspondente da Newsweek e edita o site www.brazilinfocus.com.

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