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Chávez e a ordem dos autocratas eleitos

Para líder, democracia não liberal funcionou melhor do que um modelo autoritário clássico, que teria integrado oposição externa e doméstica de maneira mais eficiente

Por É COLUNISTA DO FINANCIAL TIMES , DO NATIONAL JOURNAL , DA ATLANTIC MONTHLY , CLIVE , CROOK , BLOOMBERG NEWS , É COLUNISTA DO FINANCIAL TIMES , DO NATIONAL JOURNAL , DA ATLANTIC MONTHLY , CLIVE , CROOK e BLOOMBERG NEWS
Atualização:

H ugo Chávez é um desafio para a visão de mundo de muitos observadores de países ricos. Sua vitória há uma semana lhe conferiu, se a sua saúde o permitir, mais um mandato de seis anos como presidente da Venezuela. Ele é o primeiro autocrata eleito da América Latina e talvez do mundo. "Autocrata eleito" é uma categoria um tanto confusa. De acordo com um modelo que prevaleceu durante décadas depois de 1945, existem na verdade dois tipos de Estado: o Estado livre e o desprovido de liberdade. A democracia boa. A autocracia ruim. Chávez representa uma terceira via, que pode contagiar. A reação à sua recente vitória é reveladora. Alguns, na verdade uma minoria, celebraram sua conquista como a democracia em funcionamento. Chávez venceu porque suas decisões políticas são populares e corretas: veja como ele reduziu a pobreza no país ao utilizar as receitas do petróleo para dar emprego, assistência médica e habitação para os pobres. É o socialismo democrático em ação. Muitos outros encaram sua vitória de modo diferente. Observam a expansão do controle estatal, a corrosão sistemática da esfera privada, a supressão do equilíbrio de poderes, o culto da personalidade, o clientelismo, a corrupção, a produtividade em queda e o estupendo desperdício. Para essas pessoas trata-se de um fracasso monumental. Mas o que é revelador é a relutância dessas pessoas em admitir que isso pode ocorrer numa democracia "real". A votação foi livre, mas não justa. Esse é o clichê. Um subterfúgio. A eleição na Venezuela não foi manipulada. Ninguém discute que o país quis Chávez. Ninguém questiona sua vitória com 55% dos votos contra 44% do seu rival. A Venezuela, realmente, é uma democracia em funcionamento, mas que deu tragicamente errado. Naturalmente Chávez usou o poder do Estado para comprar votos e colocar a oposição em desvantagem. Sim, ele explorou essas vantagens a um grau nunca visto e poderia fazê-lo porque eliminou muitas das proteções constitucionais do país. Mas essa linha de argumento tem um alcance maior. Se nas "verdadeiras democracias" os governos não compram votos com dinheiro público e seus dirigentes não exploram as vantagens eleitorais advindas do fato de estarem no poder, podemos dizer que o número dessas "democracias" diminui a ponto de ser inexpressivo. Veja o dinheiro gasto nas campanhas presidenciais nos Estados Unidos, por exemplo. Dentro de um mês, pergunte ao lado perdedor se a votação foi "justa" e livre. É melhor admitir que a Venezuela é uma democracia, que Chávez foi reeleito pela vontade popular, mas que a democracia não é suficiente. Não é apenas semântica. Chávez torna mais fácil vermos como as democracias podem ser corrompidas, como é importante interromper essa corrupção no início e democracias não liberais como a Venezuela não são necessariamente anomalias ou exceções. Chávez explorou dois fatores que o beneficiaram: seu próprio talento político e os enormes ganhos com o petróleo venezuelano. Ele assumiu o governo em 1998, antes das enormes altas dos preços da commodity. No início, realizou algumas reformas e não era um extremista econômico. Promoveu um referendo para criar uma Assembleia Constituinte encarregada de redigir uma nova Constituição. Com base nas novas regras os poderes do Congresso foram transferidos para a presidência, o que estabeleceu o modelo de chavismo. Às vezes ele se excedeu. Houve revezes, mas o padrão básico foi instituído: polarizar a opinião pública, marginalizar a oposição, reduzir seu dever de prestar contas (exceto para o eleitorado como um todo) e reunir as alavancas do poder na presidência. Quando o dinheiro do petróleo começou a fluir, Chávez ampliou os gastos sociais maciçamente e conseguiu reduzir a pobreza no país. Usou o dinheiro também para aumentar suas vantagens políticas. O governo desembolsou recursos à vontade, por meio de inúmeros canais visíveis e invisíveis, sem nenhuma fiscalização de qualquer centro de poder concorrente. Chávez usou os gastos sociais como se fossem uma dádiva do presidente. Na falta de uma fiscalização, também ficou fácil cooptar líderes do minguado setor privado - uma licitação competitiva não é uma marca distintiva da Venezuela - aumentando ainda mais o controle da presidência sobre os recursos do país e minando cada vez mais a oposição política. Apesar disso, essa oposição teve uma espécie de revival na eleição. Mais unida do que o habitual e sob a liderança competente de Henrique Capriles Radonski, a coalizão contra Chávez representou um sério desafio. Um tributo aos danos que ele infligiu ao país. Não obstante o petróleo, os custos das medidas políticas do presidente não são imperceptíveis. A infraestrutura do país, sem recursos e mal administrada pelos apadrinhados do presidente, está desmoronando. As receitas do petróleo, setor gerido como um feudo da presidência, são bem menores do que deveriam graças a uma ineficiência atroz. Os apagões assolam um país rico em energia. O estado de direito inexiste e o crime é endêmico. Os investidores estrangeiros se afastaram e venezuelanos talentosos tiveram de escolher entre um futuro sob as condições de Chávez ou a emigração. A Venezuela é uma democracia e Chávez ainda é popular. Na verdade, para ele a democracia funcionou melhor do que uma autocracia aberta, que teria alinhado a oposição externa e doméstica de modo mais eficiente. As democracias não liberais, em circunstâncias certas, podem ser mais fortes do que as tiranias absolutas. Elas se prestam mais para dividir e governar. Vale a pena analisar as lições de Chávez. Democracia não basta. E democracia não liberal não é um paradoxo. A competição política, a disseminação do poder e o compromisso no sentido de um governo com limites são tão importantes para o bem-estar político e econômico de um país quanto o voto. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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