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China diz que ex-diplomata do Canadá foi preso por violar lei

Pequim alega que Michael Kovrig trabalha para ONG não registrada no país; para muitos na China, prisão de executiva chinesa no Canadá tem a ver com 'orgulho nacional'

Por Anna Fifield , David J. Lynch e Ellen Nakashima
Atualização:

PEQUIM - A China disse nesta quarta-feira, 12, que o canadense Michael Kovrig, detido em Pequim na segunda-feira, violou a lei por trabalhar em uma ONG, a International Crises Group, de Bruxelas, que não está registrada no país, algo que poderia afetar a segurança nacional. Kovrig é especialista em nordeste asiático e foi diplomata em Pequim, Hong Kong e na ONU. Os jornais oficiais chineses costumam definir as ONGs estrangeiras como uma “cobertura para espionagem”.

O Canadá anunciou nesta quarta-feira à noite que o empresário canadense Michael Spavor desapareceu depois comunicar que estava sendo interrogado pelas autoridades chinesas. O governo canadense tenta descobrir o paradeiro dele.

O ex-diplomata canadense e especialista do International Crisis Group Michael Kovrig Foto: Julie DAVID DE LOSSY / CRISIGROUP / AFP

A detenção de Kovrig coincidiu com as ameaças de represália de Pequim ao Canadá pela prisão, a pedido dos EUA, de Meng Wanzhou, diretora financeira da empresa de telecomunicações chinesa Huawei. Ela foi libertada na terça-feira após pagar fiança de US$ 7,5 milhões e entregar seus passaportes. 

Excecutiva chinesaMeng Wanzhou deixa sua casa em Vancouver acompanhada por seguranças após deixarprisão sob fiança Foto: Jonathan Hayward/The Canadian Press via AP

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Meng aguarda a análise de um pedido de extradição dos EUA, que a acusam de fraude. Ela usará uma tornozeleira eletrônica, terá de permanecer em sua casa em Vancouver, das 23 horas às 6 horas, e só sairá acompanhada de vigilância.

Orgulho Nacional

Para muitos na China, a prisão da executiva a pedido dos EUA não tem nada a ver com leis, sanções ou justiça. Mas sim com o orgulho nacional. As acusações de fraude contra Meng, filha do fundador da Huawei, se encaixam na narrativa chinesa sobre os esforços americanos para minar a ascensão da China como inovadora e rival, especialmente na corrida pelo próximo passo na tecnologia do smartphone, o 5G.

Além disso, Meng é vista na China como uma espécie de princesa corporativa, e a Huawei está profundamente envolvida com o esforço de Pequim para o desenvolvimento liderado pela China em toda a Ásia e além. "Os Estados Unidos estão deliberadamente fazendo isso contra a Huawei, porque a Huawei é uma líder da indústria chinesa”, disse Chen Lili, um médico de 30 anos que parou de trabalhar em um hospital perto de uma loja da Huawei em Pequim. “Quando ouvi pela primeira vez sobre a prisão de Meng, fiquei chocado e com raiva.” As autoridades dos EUA apresentam histórias muito diferentes. Meng, dizem eles, se envolveu em fraude sobre os laços da Huawei com uma empresa suspeita de desrespeitar as sanções dos EUA ao Irã. A Huawei é uma ameaça potencial para a ciberespionagem contra o Ocidente e os aliados.

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O choque desses retratos contrastantes tornou a prisão de Meng em um caso de estudo em muitas das questões mais profundas - competição, segurança nacional, influência internacional - que estão interligadas com as contínuas batalhas comerciais e quase todas as transações entre Pequim e Washington. (Os EUA condenam a China por suposta invasão de hackers e espionagem econômica) "Seja no governo (chinês) ou entre as pessoas, eles darão mais importância ao desenvolvimento da Huawei e a apoiarão mais agora”, disse Wu Xinbo, professor de estudos internacionais da Universidade Fudan, em Xangai. “Nas negociações comerciais entre os EUA e a China, isso apenas tornará a China mais determinada a promover o desenvolvimento de alta tecnologia”.

Acusações

Meng, que foi presa em 1º de dezembro em Vancouver, enfrenta acusações de fraude nos Estados Unidos por supostamente alegar que a Huawei não possui vínculos financeiros com uma empresa de Hong Kong, a Skycom, que vendeu produtos manufaturados para o Irã. Ainda não está claro quando Meng poderá ser extraditada do Canadá. Mas muitos chineses já emitiram seu julgamento. “Definitivamente, isso não é apenas sobre a lei. Isso é algo de natureza muito vil”, disse Lang Bin, de 29 anos.

Os Estados Unidos “estão tentando fazer o que for possível para conter a expansão da Huawei no mundo, simplesmente porque a empresa é ponto fundamental para as competitivas empresas de tecnologia da China”, escreveu o jornal estatal China Daily em editorial. 

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A Huawei, mesmo sendo uma empresa privada, está estreitamente alinhada com o governo chinês. “Não se consegue ser uma empresa do porte da Huawei sem um bom relacionamento com o governo, sem entender as prioridades do governo e ajudar a executá-las”, disse Andrew Polk, sócio fundador da Trivium/China, uma empresa de pesquisa sediada em Pequim.

Na verdade, a Huawei tem sido o eixo de dois dos principais projetos do presidente Xi Jinping: a iniciativa de infraestrutura “One Belt, One Road” (o Cinturão Econômico da Rota da Seda) de trilhões de dólares, no qual a China está construindo aeroportos e estradas e redes de telefonia celular em 60 países e o programa “Feito na China 2025” com a meta de transformar a China na líder mundial em manufatura de alta tecnologia.

Quando um importante estudioso chinês fez uma apresentação em um fórum dedicado à iniciativa sobre o Cinturão Econômico da Rota da Seda no ano passado, ele usou a Huawei como exemplo para ilustrar como o projeto expansionista do governo e das empresas de tecnologia da China cresciam lado a lado ao longo da Rota Digital da Seda. “A Huawei se tornou o que é atualmente em função da Rota da Seda”, disse Zhang Yansheng, o principal pesquisador do Centro China para Intercâmbio Econômico Internacional, afiliado ao Estado, em Pequim.

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Quando o presidente do Laos visitou Pequim em maio, foi recebido na Diaoyutai State Guesthouse (complexo de pousadas em Pequim) tanto pelo presidente da China quanto pelo presidente da divisão regional do sudeste asiático da Huawei.

Liderança tecnológica

No centro da atual disputa comercial estão as preocupações de Washington quanto às ambições de Pequim para assumir liderança tecnológica global. O representante comercial dos EUA, Robert E. Lighthizer, diz que a China busca adquirir a tecnologia americana por qualquer meio necessário: aquisição, licenciamento coercitivo de joint venture e roubo direto.

Embora as autoridades dos EUA afirmem que a prisão de Meng não tem relação com a disputa comercial, a Huawei é uma das “campeãs nacionais” chinesas que ilustram a preocupação do governo com o casamento entre os recursos financeiros de Pequim e a capacitação em pesquisa de uma empresa comercial. A Huawei é uma das poucas empresas globais de telecomunicações que desenvolvem as inovações patenteadas que definirão os padrões técnicos globais para a emergente quinta geração, ou 5G, da tecnologia celular.

O 5G fornecerá serviços de banda larga móvel mais rápidos e competentes e tornará possível a “Internet das Coisas”, conectando bilhões de sensores individuais em residências, fábricas e escritórios governamentais em todo o país. Carros autônomos, eletrodomésticos mais eficientes, sistemas de entretenimento de realidade virtual e fábricas inteligentes dependerão de redes 5G. Somente nos Estados Unidos, espera-se que a implantação do 5G envolva US$ 275 bilhões em investimentos em rede, segundo a Fundação de Tecnologia da Informação e Inovação, um centro de altos estudos de Washington.

Após as avaliações do Congresso de que a Huawei é um risco de segurança nacional, as maiores operadoras americanas pararam de usar equipamentos Huawei, e a empresa está efetivamente proibida de fornecer a rede 5G americana. A Austrália e o Japão se uniram aos Estados Unidos para assumir uma linha-dura contra a Huawei, que pode oferecer equipamentos de qualidade que geralmente são até 30% mais baratos que as alternativas. Mas mesmo que o equipamento da Huawei não seja usado em novas redes dos EUA, a empresa ainda pode lucrar licenciando sua tecnologia para fabricantes americanos de infraestrutura para celular. A China detém cerca de 10% das patentes relacionadas aos padrões 5G, a maioria deles pertencentes à Huawei, de acordo com Doug Brake, diretor de política de banda larga e espectro do ITIF. “O mercado para o equipamento em si é significativo, mas a propriedade intelectual que entra no equipamento e nos dispositivos dos usuários finais é enorme”, disse ele.  As agências de espionagem americanas há muito tempo alertam sobre o que consideram a ameaça potencial de espionagem representada pelo uso de equipamentos chineses nas redes de telecomunicações dos EUA. "As agências de segurança foram muito claras que isso não era uma questão de conjectura da parte deles”, disse uma fonte da indústria, que falou sob condição de anonimato porque as conversas eram confidenciais. “Eles acreditam ter encontrado evidências claras de comprometimento.”

Espionagem 

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No final de 2009, a Agência Nacional de Segurança informou a AT&T, que estava avaliando os componentes da Huawei, que seria melhor selecionar outro fornecedor se quisesse continuar seus lucrativos negócios com o governo dos EUA. Empresas de tecnologia chinesas como Huawei e ZTE “representam uma ameaça de contra inteligência porque a proposta chinesa é usá-las como coletoras de inteligência”, disse James R. Clapper Jr., que se aposentou no ano passado como diretor de inteligência nacional.

“Eles não apenas permitem isso, como também incentivam", disse Clapper em uma entrevista. “Então, se você comprar o equipamento deles ou aproveitar seus serviços, você se abre para uma potencial vulnerabilidade de contra inteligência.” A China nega qualquer tipo de espionagem. O Reino Unido, no entanto, não foi persuadida pelos argumentos dos EUA e, em 2003, decidiu permitir que a Huawei entrasse em sua rede de telecomunicações, embora o equipamento da Huawei não tenha permissão para tocar em qualquer capacidade de interceptação do governo.

O Reino Unido está atualmente avaliando se permitirá que suas empresas de telecomunicações usem equipamentos Huawei em suas redes 5G. Uma operadora, a BT, disse no início deste mês que começou a retirar o equipamento da Huawei de suas redes 3G e 4G existentes em 2016 e disse que a empresa chinesa "não foi incluída na seleção de fornecedores para o nosso núcleo 5G". “Existe um risco potencial para o futuro? Claro. Todo mundo aceita isso”, lembrou Robert Hannigan, que liderou o GCHQ, um serviço de inteligência britânico, até janeiro de 2017. Hannigan disse acreditar que “há uma histeria sobre” a questão da Huawei. “O que precisamos”, disse, “é uma análise sóbria, informada por expertise e inteligência”. / Tradução de Claudia Bozzo

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