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China investe em Mianmá para garantir abastecimento de petróleo

Pequim constrói oleoduto no país como parte da estratégia de reduzir dependência da importação pelo Estreito de Malaca

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Por Cristiano Dias
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Uma boa dica para saber como a China resolverá seu maior problema de segurança energética é contar o número de restaurantes chineses que abriram no ano passado em Rangum, maior cidade de Mianmá, a antiga Birmânia. Não que os birmaneses tenham cultivado gosto repentino pela culinária chinesa, mas sim porque Pequim vem investindo no país vizinho para diminuir sua dependência da importação de petróleo através do Estreito de Malaca. O estreito é uma passagem de 800 quilômetros entre Cingapura e Indonésia pela qual cruzam 60 mil cargueiros, todos os anos, transportando um terço do comércio mundial. Para a China, é um ponto estratégico por onde passam 80% de suas importações de petróleo. Os chineses precisam desse fornecimento para sustentar um crescimento econômico acima dos 10% ao ano. "É isso que dá legitimidade ao governo chinês", disse por telefone ao Estado o cientista político Baohui Zhang, da Universidade de Lingnan, em Hong Kong. "Qualquer entrave econômico pode causar instabilidade social e ameaçar o regime." Essa vulnerabilidade é conhecida na China como "Dilema de Malaca". "O dilema é conseqüência da obsessão do governo chinês em diminuir os riscos comerciais no Estreito de Malaca", explicou Ian Storey, pesquisador do Instituto de Estudos do Sudeste Asiático, centro de estudos de Cingapura. O gesto mais claro de que a China está suando a camisa para amenizar o problema foi dado em abril, quando o governo de Mianmá deu sinal verde para que os chineses construíssem 1.200 quilômetros de um oleoduto que liga o porto de Sitwe, no sul do país, à cidade chinesa de Kunming. O projeto economizaria três dias de transporte e 3.300 quilômetros de viagem. A obra, que está programada para começar este ano, será concluída em 2010 e enviará 40 milhões de toneladas de petróleo à China, um terço do volume atualmente importado através de Malaca. ?MALACOFOBIA? Para o restante do mundo, os principais contratempos do Estreito de Malaca são a pirataria e a atuação de grupos terroristas como a Al-Qaeda e seu braço indonésio, a Jemmah Islamiyah. Apesar de o aumento do patrulhamento ter diminuído o número de assaltos a navios na região, o relatório anual do International Maritime Bureau registrou 50 ataques em 2006. A China, contudo, tem uma preocupação a mais. "O maior medo dos chineses é um eventual conflito com Taiwan. Se isso acontecesse, os EUA fechariam a passagem de Malaca e estrangulariam a China", disse Storey. De acordo com ele, a fobia é baseada no fato de a Marinha dos EUA ter-se transformado na polícia do Índico, o que causa arrepios nos corredores do Grande Palácio do Povo, a sede do governo chinês. Para igualar as coisas, a China está modernizando sua Marinha de guerra e expandindo sua presença na região. O presidente da China, Hu Jintao, já percebeu que o domínio do Índico passa pelo controle de Malaca. Num discurso para empresários, em 2003, ele declarou que "algumas potências" estariam tentando monopolizar a passagem. No início de setembro, a profecia de Hu ficou mais clara. EUA, Japão, Índia e Austrália formalizaram o que foi batizado de "Iniciativa Quadrilateral" e realizaram na semana passada exercícios de guerra na Baía de Bengala. Birmânia era como os ingleses chamaram o extremo oriente da Índia, que fez parte do Império Britânico até a independência do país, em 1948. Um violento golpe de Estado, em 1989, transformou o país em Mianmá. A razão, segundo a junta militar que assumiu o poder, era a necessidade de apagar os resquícios do colonialismo. Os generais transformaram Mianmá numa das mais violentas ditaduras do planeta. Diante dos abusos dos direitos humanos, o Ocidente tentou isolar o país com sanções econômicas, mas a pressão nunca deu resultado. A culpa do fracasso diplomático cai na conta de países que furaram o bloqueio, entre eles a China, acostumada a pôr seus interesses comerciais acima da reputação internacional. Portanto, os interessados em explorar as gigantescas reservas de petróleo e gás do fundo da Baía de Bengala têm de bajular os generais de Mianmá. Até agora, os chineses estão em vantagem. Países como Índia e Coréia do Sul, que também estão de olho nas concessões da junta, têm dificuldades para conjugar democracia e comércio internacional. Enquanto isso, sem peso na consciência, o governo chinês estende a mão aos militares. Em janeiro, a China vetou uma resolução proposta pelos EUA no Conselho de Segurança da ONU que condenaria a ditadura. Por fim, a aproximação entre chineses e birmaneses guarda um paradoxo surpreendente: uma discreta pressão da China por reformas políticas no país vizinho. O motivo não seria uma súbita angústia do governo chinês com a questão dos direitos humanos. "O que há é o medo de que a falta de legitimidade cause uma revolta popular, que poderia derrubar a ditadura em Mianmá e prejudicar os negócios da China", afirmou Zhang. Além disso, o volume de investimentos em Mianmá fez com que 1 milhão de chineses cruzassem a fronteira. Uma crise grave no país vizinho faria com que essa massa de emigrantes tomasse o rumo de volta. A discreta pressão de Pequim parece ter dado resultado.Depois de 14 anos adiando a redação de uma nova Constituição, o governo militar anunciou no dia 6 o esboço de uma Carta, que irá a referendo no ano que vem. Em troca da boa vontade dos generais, a China está construindo estradas, hidrelétricas e instalações militares, reformando o porto de Rangum e armando o Exército birmanês. Já que a continuidade do regime está diretamente ligada à sua segurança energética, Mianmá parece ser a solução para o Dilema de Malaca.

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