Chineses, russos e startups americanas disputam batalha por lítio da Bolívia

Empresas gigantescas e empreendedores aventureiros desenvolvem projetos-pilotos para explorar as maiores reservas mundiais do mineral, crucial para baterias de carros elétricos

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Por Clifford Krauss
Atualização:

SALAR DE UYUNI, Bolívia - A missão era quixotesca para uma pequena startup de energia do Texas: derrotar gigantescas companhias industriais chinesas e russas na exploração de riquezas minerais que podem um dia abastecer dezenas de milhões de veículos elétricos.

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Uma equipe viajou de Austin à Bolívia no final de agosto de 2021 para se reunir com líderes locais e nacionais em instalações estatais de lítio e convencê-los de que a empresa, chamada EnergyX, domina uma tecnologia capaz de atender ao potencial da Bolívia para se tornar uma potência global de energia verde. Ao chegar, eles descobriram que a reunião à qual planejavam comparecer fora cancelada e que os seguranças barraram o acesso ao local.

Mesmo assim, a verdadeira atração estava à vista: um gigantesco mar calcário de salmoura no alto dos Andes chamado Salar de Uyuni, que é rico em lítio, entre vários minerais com valor crescente no mundo todo, por serem necessários para as baterias usadas em carros elétricos e na rede elétrica.

O Salar de Uyuni, na Bolívia, o maior mar de sal do mundo, essencial para a extração de lítio que tem sido disputada por empresas estrangeiras Foto: Meridith Kohut/The New York Times

Rodeado por equipamentos enferrujados, tanques de produção vazios e bombas desacopladas de canos, o lugar parecia abandonado. Mas Teague Egan, o presidente-executivo da EnergyX, não viu nada além de promessas. “Esta é a nova Arábia Saudita”, prometeu.

Os indígenas quéchuas reverenciam o Salar de Uyuni, uma área de 4 mil quilômetros quadrados de salinas que seus antepassados acreditavam ser formado pela mistura do leite materno de uma deusa e pelas lágrimas salgadas de seu bebê. Para Egan, a área forma uma “uma beleza branca pura até onde os olhos podem ver”.

Potencial climático

Com um quarto das reservas conhecidas de lítio no mundo, a Bolívia, de 12 milhões de habitantes, tem potencial para estar entre os vencedores da busca global pelas matérias-primas necessárias para deixar para trás o petróleo, o gás natural e o carvão na luta contra a mudança climática.

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Oito empresas estrangeiras competiram nos últimos meses para estabelecer projetos-piloto de lítio no salar, incluindo quatro da China e uma da Rússia, países que têm relações mais amigáveis com o governo da Bolívia do que os Estados Unidos.

Assim como muitos há tempos buscam riquezas na exploração do petróleo, a revolução da energia limpa está produzindo uma onda de empreendedores corajosos, que esperam provocar um novo boom no setor energético, navegando na interseção entre a geopolítica e a mudança climática. Alguns são nomes conhecidos como Elon Musk, da Tesla. Já Egan e outros estão no começo de sua trajetória, em busca de sua primeira chance em lugares ricos em minerais como a Bolívia, a República Democrática do Congo e o Pacífico Sul.

Egan está entre os azarões cheios de determinação. Sua empresa, de 30 funcionários, é uma das duas americanas entre as oito concorrentes ao desenvolvimento das reservas de lítio da Bolívia.

O lítio é um componente básico das baterias de íon-lítio, permitindo o fluxo de correntes elétricas. Por causa do peso leve do metal, de sua longa vida, grande capacidade de armazenamento e fácil recarga, a demanda deve crescer exponencialmente na próxima década, com o objetivo de abastecer uma frota em expansão de veículos, além de gerar armazenamento de energia renovável para a rede elétrica. Só neste ano, os preços dos compostos de lítio aumentaram mais de 200% em vários mercados globais.

Teague Egan, executivo da EnergyX, olha para os céus durante a noite no Salar de Uuyuni, na Bolívia; projetos de exploração de lítio Foto: Meridith Kohut/The New York Times

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Egan, 33, nunca havia trabalhado na indústria de energia antes de iniciar a EnergyX em 2018, em busca de projetos de lítio. Ele parece ser um personagem improvável para conduzir o futuro energético da Bolívia. Nunca trabalhou na América Latina e praticamente não fala espanhol. 

Mas, para Egan, a única coisa realmente importante é sua crença de que a sua tecnologia para extrair o lítio da salmoura andina é a melhor para finalmente tornar a Bolívia uma potência energética. “Na Bolívia, eles são muito sensíveis com relação à política”, disse ele. “Só não entendo por que não fariam o que é melhor para o país.”

'Lítio para os bolivianos'

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Há muitas coisas que Egan não pode controlar no país, repleto de divisões étnicas, ideológicas e regionais.

O partido do governo da Bolívia, o Movimento pelo Socialismo (MAS), é liderado pelo ex-presidente Evo Morales, que tentou aproximar o país da China antes que os protestos e os militares o derrubassem do poder há dois anos.

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O atual presidente, Luis Arce, ex-ministro da Economia de Morales, lidera uma coalizão de social-democratas e militantes mais à esquerda. Ele enfrenta resistência de movimentos locais que se opõem ao governo e são cautelosos com os interesses estrangeiros, vendo-os como uma continuação da exploração da riqueza mineral da Bolívia, como ocorre desde o século XVII.

Há apenas dois anos, um negócio de lítio entre Morales e uma empresa alemã deu combustível a protestos. Morales foi forçado a rescindir o contrato apenas uma semana antes de deixar o poder, sob pressão de militares, e se exilar do país.

Marco Pumari, político local que liderou os protestos, exigia a triplicação dos royalties para a província de Potosí, e o envolvimento local na propriedade de empresas de lítio. Ele disse que suas demandas não mudaram e que sua oposição ao partido no poder permanece firme.

Localizado entre Potosí e Oruro, na borda da Cordilheira dos Andes, o salar de Uuyuni temmais de 10 mil quilômetros quadrados Foto: Meridith Kohut/The New York Times

“Assim que escolherem publicamente as empresas estrangeiras, a província se mobilizará”, disse ele em entrevista. “O governo está brincando com fogo.”

Em agosto, cerca de 80 manifestantes ocuparam duas estradas, impedindo Arce de visitar as instalações de lítio do governo. Exigiam a demissão do novo chefe da empresa estatal de lítio e pediam  mais voz das comunidades locais nas decisões sobre a produção de lítio. O protesto forçou o cancelamento do encomtro ao qual Egan e sua equipe da EnergyX deveriam comparecer.

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Funcionários do governo logo fizeram uma visita para acalmar as tensões. Os visitantes incluíam Franklin Molina, o ministro da Energia, e o chefe da companhia estatal de lítio, cuja demissão era pedida pelos manifestantes. 

Em uma reunião comunitária, eles prometeram empregos e programas sociais em uma indústria de lítio que um dia incluiria a fabricação de baterias e até carros elétricos. “O lítio é para os bolivianos”, declarou Molina entre aplausos.

Especialistas em energia dizem que um grande aumento na produção de lítio na Bolívia manteria os preços das baterias baixos, ajudando o presidente Joe Biden a atingir a sua meta de que metade dos carros novos vendidos nos Estados Unidos em 2030 sejam elétricos, ante 4% hoje.

Buscando contatos

Mas Washington tem pouca influência na Bolívia, cujos líderes há muito discordam da política dos EUA para a América do Sul. Isso pode explicar por que alguns executivos de energia não acham que a Bolívia valha o risco.

Egan vê as probabilidades de forma diferente. O próprio fato de ele ter chegado tão longe é muito inesperado. Ele soube do lítio boliviano por acaso, quando ele e um amigo cruzaram a América do Sul como turistas em 2018.

Quando chegaram às salinas, um guia explicou que estavam na maior reserva de lítio do mundo. “Eu pensei: ‘Não sei como vou fazer isso, mas preciso estar envolvido’”, disse Egan.

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Após a vitória de Arce, Egan compareceu à posse. Com a ajuda de  Diego von Vacano, um professor boliviano de ciências políticas na Texas A&M University e conhecido do novo presidente, Egan fez contatos importantes no novo governo.

Em agosto, após o cancelamento da reunião, Egan e sua equipe voaram para La Paz e continuaram batendo nas portas, na esperança de se aproveitar dos contatos que Egan havia feito entre os principais funcionários do Ministério da Energia.

Quando se encontraram com Carlos Humberto Ramos, novo chefe da empresa estatal de lítio, para convencê-lo das vantagens de sua tecnologia, descobriram que ele tinha pouco conhecimento dela.

A equipe de Egan voltou a Ramos no dia seguinte e, após explicar sua tecnologia aos seus principais técnicos, a equipe foi informada de que poderia visitar o complexo de lítio e que um acordo inicial aprovando o projeto da EnergyX estava praticamente fechado.

Naquela noite, o aliado mais forte da EnergyX no governo — Álvaro Arnez, um vice-ministro da Energia que supervisiona o desenvolvimento do lítio — deu sua aprovação ao acordo. Ele se juntou à equipe de Egan para uma celebração em um elegante restaurante de La Paz.

Na manhã seguinte, Egan e sua equipe voaram de volta para as salinas. Inspecionaram vários lagos feitos pelo homem, que retêm salmoura para evaporação, um método de extração de lítio que tem sido prejudicado por fortes chuvas sazonais. Mesmo quando seco, o lítio deve ser separado quimicamente de outros minerais, um processo que desperdiça muito do lítio desejado. Egan disse aos técnicos que sua tecnologia poderia aumentar e acelerar muito a produção.

Houve divergências sobre onde colocar o projeto-piloto proposto. Quando Egan sugeriu maneiras de avançar rumo à comercialização, os técnicos lhe disseram para esperar até que os resultados do teste inicial estivessem disponíveis. Mas ele estava satisfeito por ter visitado as instalações antes de outras empresas.

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Espaço para todos

Em entrevista, Franklin Molina, o ministro da Energia boliviano, disse que diplomatas chineses e russos estavam fazendo lobby em nome de suas próprias empresas, mas insistiu que “há espaço para americanos, russos, chineses, japoneses, quem quiser investir, contanto que respeitem nossa soberania”.

A China tem vantagens. Ela já controla ativos substanciais de lítio na América do Sul, e suas empresas fizeram cerca de US$ 4,5 bilhões em investimentos em lítio nos últimos três anos na América do Sul e no México. Os bancos chineses concedem empréstimos a juros baixos para empresas chinesas de mineração e construção que operam no exterior, como parte dos planos do presidente Xi Jinping de dominar as indústrias do futuro.

Quanto à Rússia, o presidente Vladimir Putin falou por telefone com Arce pelo menos duas vezes sobre lítio e outros assuntos, disseram autoridades russas.

Egan disse que não estava recebendo praticamente nenhuma ajuda do governo dos EUA, e as autoridades americanas dizem que sua maior esperança é fazer uma sutil pressão diplomática por igualdade de condições.

O investimento de longo prazo valeu a pena para Egan, pelo menos até agora. Ele assinou um acordo para iniciar o piloto e, em outubro, despachou um contêiner para a Bolívia equipado com bombas, válvulas, tanques e membranas para separar o lítio da salmoura. Se o piloto mostrar resultados promissores, ele poderá prosseguir com um projeto comercial.

Das 20 empresas em competição no início do ano, o governo escolheu oito para realizar os projetos-pilotos, incluindo uma outra pequena empresa americana, a Lilac Solutions, da Califórnia.

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Todos os candidatos — o oitavo é da Argentina — estarão competindo pela atenção e por recursos do governo boliviano, como conexões de energia e técnicos locais qualificados, antes que qualquer um possa ser aprovado para avançar para as operações comerciais. “Nós ainda vamos demonstrar nosso método e ampliá-lo”, disse Egan. “Ainda temos que entrar no mercado comercial. É só o primeiro dia.”

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