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Choque de culturas é mais forte que globalização

Fenômeno que aproxima países e pessoas, que pasteuriza hábitos e roupas, não consegue transcender fés e raças

Por BEN , BARBER e TRIBUNE NEWS SERVICE
Atualização:

Surpresa. Esse não é o mundo que imaginamos que iríamos deixar como herança aos nossos filhos. Após o fim da Guerra Fria, em torno de 1990, alguns historiadores e jornalistas celebraram o triunfo do capitalismo. O primeiro mundo composto por EUA/Canadá, Europa e Japão tinha vencido a batalha. O segundo mundo do socialismo tinha evaporado. O terceiro mundo permaneceu em grande medida na pobreza, mas alguns países conseguiram se alçar ao status de renda média. Então, por que estou há uma hora nessa fila de aeroporto, expondo as axilas e virilhas a uma varredura de raios-x? Por que países onde estive décadas atrás como Irã, Afeganistão, Paquistão e Jordânia são agora perigosos demais para serem visitados fora de um SUV blindado, com guarda-costas e armamento? Por que, nos anos 1970, era possível caminhar de vilarejo em vilarejo nas montanhas do Hindu Kush sem temer roubos nem decapitações, mas atualmente a região é considerada inóspita, repleta de ossadas de visitantes incautos da fé errada? Parece que 1990 não foi o marco final de 4 mil anos de guerra e conflito. Em vez disso, tudo não passou de mais uma ondulação no oceano de sangue que chamamos de história. No Sri Lanka, os Tigres Tâmeis de Tamil-Eelam deram início ao renascimento das guerras culturais com atentados suicidas e limpeza étnica. Numa calma e fresca estrada rural em 1988, os tigres pararam um ônibus vermelho de dois andares, deixando todos os tâmeis partirem e massacrando a maioria, composta por cingaleses. Alguns anos antes, lojas tâmeis em Pettah Bazaar, Colombo, tinham sido incendiadas por turbas de cingaleses. A guerra étnica ou religiosa, como o conflito entre tâmeis e cingaleses, substituiu a guerra entre Estados-nação. Conflitos desse tipo estão eclodindo na Caxemira, Bósnia, Kosovo, Ucrânia, Moçambique, Mali, Nigéria, Síria, Iraque, Afeganistão, Eritreia, Sudão, Costa do Marfim, Iêmen, Mianmar, Paquistão, Georgia, Chechênia, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Índia, Azerbaijão e China. Os conflitos desse tipo têm como objetivo eliminar religiões rivais, grupos étnicos, idiomas, cores, raças, castas ou classes. Frustração. E quanto à nova religião que tomou o mundo nos anos mais recentes - a globalização? Disseram-nos que ela deveria transcender fés e raças. Todos acabarão usando calça jeans, comendo no McDonald's, falando inglês e ganhando dinheiro. Todos aprenderíamos a usar computadores e a fazer da internet um caminho para se unir aos outros num futuro universal aberto a todos. A ideia era boa. Mas está em conflito com a história. A idolatria à globalização nos editoriais dos principais jornais americanos e a transferência de empregos americanos de manufatura para a Ásia e o México pouco fizeram para evitar os massacres em todo o mundo ou para trazer prosperidade à classe média americana. Agora estamos vivendo aquilo que o professor Samuel Huntington, de Harvard, chamou de "choque de civilizações". Em 1996 ele escreveu que "no mundo pós-Guerra Fria, as distinções mais importantes entre as pessoas não serão ideológicas, políticas ou econômicas. Serão culturais." Ele dividiu o planeta em grupos culturais concorrentes que mais cedo ou mais tarde acabariam se enfrentando numa disputa por recursos, orgulho, água, espaço e outras questões. Os grupos culturais são: ocidental (euro-americano), islâmico, sínico (chinês), hindu, (cristão) ortodoxo, budista e japonês. Vi de perto o renascimento do nacionalismo étnico quando visitei o país natal de meu pai, a então Checoslováquia, em 1992, perguntando aos habitantes de Brno, Praga e Bratislava se a separação seria possível. Meses depois veio o divórcio de veludo. O Timor Leste travou uma guerra sangrenta para escapar da Indonésia. O Sudão do Sul lutou para deixar o Sudão. Bósnia, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Kosovo e Montenegro deixaram violentamente o restante sérvio da Iugoslávia. Em setembro, após 300 anos de união, cerca de 45% dos escoceses votaram pela separação da Grã-Bretanha. A Catalunha quer deixar a Espanha. Separatistas na Bélgica e na Itália querem esculpir para si Estados independentes. Quando a etnia foi considerada causa válida para separação, Vladimir Putin fez uso dela para se declarar representante dos eslavos, dos habitantes de língua russa e cristãos ortodoxos da Crimeia, da Ucrânia e dos países bálticos. Quando mais os anos passam após o fim da Guerra Fria, mais a globalização parece incapaz de apagar os incêndios por trás do EI, do Islã xiita, dos excessos russos, da busca chinesa pelo controle das vias marítimas e uma dúzia de outros conflitos que perturbam a paz, a segurança, as viagens e o comércio no mundo. Assim, quando as Nações Unidas informaram em dezembro que estavam lidando com o maior número de refugiados em necessidade desde a 2.ª Guerra - 78 milhões e aumentando - a mídia quase não deu espaço ao fato. Aprendemos a esperar o pior em nosso planeta cada vez mais superlotado. As convenções da ONU declaram os direitos humanos e a liberdade religiosa - mas raramente as defendem de maneira robusta. Os EUA e outros países ditos progressistas podem mostrar ao mundo como reduzir as tensões étnicas e culturais. Mas essa é uma mensagem que muitas vezes chega a ouvidos surdos. Nossos hábitos culturais e estereótipos uns dos outros são profundamente enraizados e perigosos o bastante para provocar guerras, especialmente a longa guerra contra o terrorismo que combatemos todos os dias. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK

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