Circo na Califórnia mostra erosão da democracia representativa

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Por Agencia Estado
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Cinco anos depois de ter contemplado o mundo com o embaraçoso espetáculo da tentativa de impeachment do presidente Bill Clinton, por causa de um escândalo sexual, e dois anos e meio de decidir a sucessão de Clinton na justiça, em lugar das urnas, os Estados Unidos exibem agora em seu maior estado, a Califórnia, mais um episódio do que um influente colunista vê como um processo de esvaziamento da democracia representativa no país onde ela nasceu e mais prosperou. Alguns já falam em "bananização" da republica americana. Para David Broder, o veterano comentarista político do Washington Post, o circo armado pela campanha de destituição do governador Gray Davis é, antes mesmo de acontecer, "um fiasco multimilionário.... e subproduto de quase tudo que deu errado no nosso sistema político". Nada menos de 247 pessoas pagaram a taxa de US$ 3,5 mil para registrar suas candidaturas. Destas, 135 preencheram todos requisitos e constarão da cédula de votação que decidirá a sorte do insosso Davis, no dia 7 de outubro. Se os eleitores se desinteressarem pelo plebiscito, o que é uma real possibilidade num país onde o comparecimento à urnas vem caindo, o próximo governador da Califórnia poderá ser escolhido com uma proporção ínfima da população adulta do estado. O favorito do momento é o ator Arnold Schwarzenegger. Até ontem, o ex-míster universo não havia se pronunciado sobre um único tema substantivo e dera apenas uma entrevista - para um jornal da Áustria, sua terra natal. A única informação relevante fornecida pela campanha de Arnold, que diz ser um "republicano moderado", é que em 1998 ele, um imigrante naturalizado, votou a favor da "Proposta 187", que negava a imigrantes ilegais e a seus filhos acesso à escola, hospitais públicos e outros serviços governamentais. Atriz pornô, comediante, socialites? A proposta foi aprovada mas não chegou a ser aplicada porque foi declarada inconstitucional pelos tribunais. Pete Wilson , o ex-governador republicano que patrocinou a iniciativa, é o chefe da campanha do ator. Entre o concorrentes há uma atriz de filme pornográfico, um comediante especializado em arrebentar melancias com uma marreta, socialites e até alguns empresários e políticos supostamente sérios. Pelos cálculos iniciais do governo, o plebiscito custará US$ 67 milhões num estado que já enfrenta um déficit orçamentário de US$ 38 bilhões. Três anos atrás, Broder advertiu para o perigo da erosão e trivialização do processo político a que se assiste hoje na Califórnia num livro intitulado "Democracy Derailed" ( "Democracia Descarrilhada"). O jornalista escreveu que uso excessivo de mecanismos de democracia direta importados no início do século passado da Suiça, tais como os referendos e plebiscitos convocados com coleta de assinaturas, à margem dos processos legislativos, estavam introduzindo uma nova forma de governo nos EUA, estranha ao espírito da constituição do país. "Embora derivada de uma reforma (introduzida em 1911 e) apoiada por progressistas ( da Califórnia) como um antídoto à influência de grupos de interesse, esse método tornou-se a ferramenta predileta dos ricos para alcançar seus próprios objetivos político - e um negócio para uma nova classe de empresários da política", escreveu Broder. Leis sem governo Para o comentarista do Post, a exploração do desdém do público pelos políticos "deu aos Estados Unidos algo impensável - em lugar de um governo de leis, leis sem governo" - e criou uma situação que "ameaça desafiar e mesmo subverter os sistema americano de governo nas próximas décadas". A explosão das iniciativas de democracia direta começaram 25 anos atrás na Califórnia com a aprovação da "Proposta 13", uma revolta contra impostos que desencadeou a revolução conservadora que levaria o ex-ator Ronald Reagan à Casa Branca, em 1980. A rápida multiplicação das decisões referendos e plebiscitos deu origem a uma nova indústria no ramo da assessoria política, especializada na coleta de assinaturas para quaisquer causas. Thomas Hiltachk, um advogado de Sacramento, tornou-se o grande empresário dos referendos. Segundo ele, o sucesso de um campanha em favor de um referendo ou plebiscito é mais uma questão de dinheiro do que do mérito da proposta a ser submetida aos eleitores, seja e;a a destituição de um governador, a redução de impostos ou a proibição do acesso de imigrantes ilegais a serviços públicos. A quem o procura, "eu sempre pergunto: você tem US$ 1 milhão?". Este é o preço mínimo da operação de coleta de assinaturas. No caso atual, custou mais. Segundo Hitachk, que é consultor jurídico da campanha pela destituição de Davis, seu principal financiador, o milionário deputado federal republicano Darrell Issa, desembolsou US$ 1,7 milhão. Objeto de piadas "A Califórnia transformou-se em objeto de piadas por submeter-se a esse despendioso esforço para punir um homem que reelegeu menos de um ano atrás", escreveu Broder há duas semanas. Segundo ele, as dezenas de decisões tomadas pelos californianos em referendos populares, nos últimos anos, sobre impostos, gastos obrigatórios com segurança, educação e saúde, e restrição do número de mandatos dos ocupantes de cargos eletivos deixaram "o governador e o legislativo do estado com pouca margem de manobra para agir em tempos difíceis". As iniciativas de democracia direta são, por isso, tão responsáveis pelos problemas do estado quanto o impopular Davis e limitam as chances de seu eventual sucessor. Broder advertiu que "as forças que estão por trás dessa perversão ( o desdém do público, a desconfiança no governo e a influência do dinheiro em eleições) predominam hoje em nossa política".

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